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terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Manual de escatologia suburbana

Nada contra o conceito de accionar um autoclismo com o pé. O Woody Allen dizia, pela boca do Larry David, no filme “Whatever works”que um sinal claro de que a civilização está perdida é que os autoclismos dos WC públicos já são feitos para se accionarem sozinhos, após cada dejecção: é este o nível da descrença generalizada no ser humano. Um homem já não é capaz de puxar a água do autoclismo quando vai à casa-de-banho. E ainda querem que a gente recicle, ou que remova os tabuleiros da mesa onde acabámos de nos lambuzar com um fastfood da zona de restauração do centro comercial que, de resto, nos oferece sempre um cenário pós-apocalíptico à hora de refeição. Mesas semeadas de tabuleiros, atulhados de plásticos e papéis, restos de comida a verter-se nas cadeiras, chão coberto de óleos e molhos de batatas. Os pés que ora escorregam, ora se pregam ao chão, é este o habitat suburbano que um cidadão, como eu por exemplo, tem que suportar ao fim de semana. 

Mas, como disse, nada contra os autoclismos accionados com o pé. Isto, pelo menos, enquanto me conseguir equilibrar numa só perna, fazendo, com a outra, pontaria e gincana na direcção do pequeno botão pregado na parede, bem atrás da cabeça da retrete. Mas nada contra, até porque, de qualquer modo, já evito tocar com as mãos nuas nas superfícies dos WC’s públicos, principalmente nos manípulos das portas e das torneiras. Lá está, porque a sociedade está, eu não direi perdida, mas pelo menos tem ainda gente que após se demorar bastante nos cubículos das casas-de-banho, vai directamente porta fora, sem um curto “pit stop” na zona dos lavatórios. Zona essa que também tem que se lhe diga. Eu sei que devemos fazer por reduzir a pegada ecológica, polegares para cima também quanto a estas medidas de poupar água nos centros comerciais, nomeadamente por meio dos temporizadores nas torneiras. Por um lado, resolve-me o problema de não ter que abrir a torneira como o faço com os manípulos das portas, que é - e ofereço de barato a receita - recorrendo à manga da camisola como quem usa um daqueles panos para tirar um bolo do forno. Não dá tanto jeito com as torneiras, dá mais bandeira, principalmente se alguém estiver ali ao lado, a olhar de esguelha, enquanto se está a pentear ao espelho ou a escarrar na pia os restos do almoço agarrados aos dentes. Com os temporizadores é mais fácil, basta dar uma marretada no topo da torneira com as costas de uma mão. É mais fácil e mais discreto.

Mas há aqui outro problema, que tem a ver com a regulação do período de caudal na torneira, ou seja, quanto tempo nos dão para lavar as mãos após cada marretada. Ok, dirão alguns, se o tempo é pouco sempre podemos dar uma nova marretada e completar a higienização das mãos de forma adequada. A questão é que o tempo não é pouco, o tempo é, em muito boas casas-de-banho, nenhum. Ao ponto de termos que estar, literalmente, a pressionar de forma constante com uma das mãos no topo da torneira, enquanto lavamos a outra. Quando digo “lavamos a outra”, enfim, é fácil visualizar que ela tem é que se desenrascar sozinha. A expressão “uma mão lava a outra” não se aplica em WC’s dos centros comerciais. Deve ter sido assim, numa eventualidade como esta no passado, que desenvolvemos o nosso tão-famoso, e sobrevalorizado, polegar oponente. Acho mesmo que a selecção natural não vai ficar por aqui, a continuar assim vamos acabar por desenvolver (direi eu, recorrendo a alguma especulação) uma espécie de terceira mão. Ora para pressionar a torneira, ora para lavar a mão restante, debaixo do caudal. Essa terceira mão que escolha, é o mínimo que deve fazer, já que saltará com certeza outras tarefas, menos dignificantes para um ser humano.

Lá está, Deus não pensou muito bem em algumas coisas. O homem foi uma espécie de doutoramento feito à pressa. Eu até compreendo isso, há mais coisas para fazer na vida. Há vida para além do doutoramento.

E bom, nem vou falar da outra maravilhosa invenção, que são os sensores postos nas torneiras, que servem para fazer accionar a escorrência de água apenas quando passamos as mãos por baixo de um sítio exacto. Um sítio tão exacto que se acumula gente nos lavatórios dos WC’s, uns a olhar de soslaio para os outros, a tentar perceber como raio é que o vizinho do lado conseguiu descobrir o ponto certo, o ponto G das torneiras. Não me alongarei mais sobre isso. Concluo apenas que, se já é difícil lavar as mãos, mais difícil ainda é a tarefa de as secar. E se já evito abrir portas com as mãos, com elas molhadas mais ainda. Pelo que aproveito sempre a nesga de espaço deixada em aberto pela pessoa que sai do WC imediatamente antes de mim. Isto leva-me a ter que medir muito bem os meus vizinhos debruçados nos lavatórios e a demorar-me a lavar as mãos o tempo necessário para poder cavalgar à boleia dos espaços que vão sendo deixados em aberto na direcção da porta da saída. Porta aberta por mãos que não se importam de a abrir sem pegas de cozinha. E assim espero e, discretamente, analiso as minhas vítimas, procuro o meu mais perfeito hospedeiro. “Será que este está quase?” pergunto-me, a ver um deles pelo espelho. “Será que é aquele que me vai abrir a porta?”. “O gajo nunca mais se despacha... bom, lá terei que usar a manga da camisa”.

3 comentários:

  1. Tu não acreditas mesmo no conceito de imunidade adquirida, está-se a ver!

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  2. esqueceste-te, talvez por pertenceres ao género masculino, dos temporizadores da luz dentro dos cubículos das casas-de-banho. cada vez mais comuns, com tempos cada vez mais reduzidos e que não se accionam com um ligeiro movimento de cabeça, obrigando-nos a oscilar os braços como quem chama alguém na outra margem. não irei entrar em pormenores pois não tenho o teu talento para a descrição escatológica mas deixo à imaginação de cada um.

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  3. O Manual que apresentas nunca esteve tão bem enquadrado na minha última permanência num Centro Comercial, que tu tão bem conheces...e tudo o que descreves se passou , mas tenho de agradecer a quem teve a Feliz ideia de colocar uns sofás no átrio das casas de banho! Boa ideia pois no Dia da Criança as filas para o WC eram dignas de espera no sofá. Outras inovações também existiam como o secador de mãos por cima dos lavatórios...e durante o tempo que esperei sentada no sofá observei o olhar das pessoas como de um peddy paper se tratasse, a descobrir onde estava o quê.
    Mas foi um dia bem passado, com H3 ...cinema...o que obscureceu um pouco o dia foi o ato de cavalheirismo do meu marido em ir ao carro buscar um casaco, pois eu tinha frio no cinema...e não é que ao regressar à sala( já escura por o filme ter começado) tropeça na minha mala e cai!!!entre mim e o banco da frente...eu evidentemente que fiquei preocupada ...mas como sempre ( penso que tenho um anjinho muito mau dentro de mim)só me apetecia rir...um rir muito contido... e pronto terminou o filme...fomos para casa e fui o mais carinhosa...protetora...que poderia ser pois afinal ele acha mesmo ter uma costela partida!!!!

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