a-chave-dicotómica

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sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Santa Iria revisitada (Mané, é para veres como te compreendo)

Há uma boa dúzia de anos estava eu deprimido, a precisar de arejar a cabeça. Dar-me-ia algum alento, pensei, dar uma escapadinha ao Frutalmeidas, na hora de almoço, para me apaziguar com um sumo natural e um pastel de massa tenra.

Porém não foi bem como imaginei. O delírio paradisíaco de beber uma pinha colada no centro de Lisboa desvaneceu-se quando cheguei ao estabelecimento, após meia hora de estacionamento. O Frutalmeidas é que estava à pinha e cheguei a suar em bica, com a camisa colada às costas. Foi mais meia hora de espera. Nem sei porque não desisti, embora tenha passado o tempo todo a digladiar-me com o ímpeto de dar meia volta e mandar tudo à fava. Por fim sentei-me, acotovelando-me no bafio do espaço atordoado pela azáfama de vozes que impeliam perigosamente em todas as direcções. Atrás de mim os gritos insolentes de um rapazola mal-educado maceravam-me os tímpanos. Mas os pais nada faziam para controlar a fera, que saltava na cadeira e a empurrava contra a minha, quase que de propósito para me desafiar perante a impassível indolência dos pais.

Já não havia pastel de massa tenra. Havia sim uma grande vontade de me ir embora. De nem sequer ter vindo. O miúdo exibia agora um vasto repertório de arrotos, e os pais riam-se. Os pais, achavam graça. Ao mesmo tempo os meus olhos esguios tentavam escapar ao olhar idoso do homem sentado à minha frente, preso a todos os meus movimentos. Serviram-me a mousse de abacate no preciso instante em que reparei que aquele meu vizinho de mesa esgravatava o nariz com o mesmo guardanapo onde limpava a boca. E claro que, qualquer apetite que eu ainda tivesse, cessou por completo com o aspecto esverdeado da mousse. Por fim pedi um café que estava queimado e frio. E paguei, pensando em mil e uma formas de pedir o livro de reclamações e ainda de dar um puxão de orelhas àqueles pais. Mas nada disse, nada fiz, enquanto este pensamento me acompanhou os passos pusilânimes até ao carro presenteado com uma multa da Emel. Um pensamento que, de resto, me acompanhou durante todo o dia de trabalho. “Mas que futuro este?” Pensava eu. “Estaremos nós entregues a futuros homens sem a mínima educação cívica?”, “Estamos a gerar monstros.

A culpa é dos pais, são eles que não têm educação, nem civismo, nem valores”. E se estava deprimido, mais deprimido fiquei. Porém tentei não me afundar completamente e decidi nessa noite, após um dia de trabalho, fazer um programa diferente para além do caminho do Campo Grande a Setúbal através da ponte Vasco da Gama, um dos poucos trajectos que sabia fazer em Lisboa. Hoje tinha resolvido ir ao cinema no Centro Vasco da Gama. Não deveria ser muito diferente do caminho para a Ponte. Apesar de deprimido sentia-me confiante e, também, já nada tinha a perder. Decidi ir ao cinema. Dirigi-me ao Centro Vasco da Gama. Segui todas as setas e indicações.

Mas por que raio fui parar a Sta Iria?

A verdade é que dei por mim na auto-estrada do Norte, em pânico, à procura da primeira saída. Saí a 6 km, em Sta Iria, e andei por lá em circuitos desorientados à procura de entrar novamente na auto-estrada. Sem sucesso, entrei num café para pedir novas indicações. Tomei antes um café, não porque me apetecesse, aliás, ainda nem tinha jantado, mas para conseguir arranjar coragem e fazer a pergunta no timing certo, sem dar muita “bandeira” nem fazer uma grande figura de “totó”. Lá me indicaram. E lá voltei para Lisboa. “Desisto, vou para a ponte Vasco da Gama”, pensei. Mas depois insurgi-me “Mas que raio, não podes desistir assim tão facilmente. Hoje é sexta-feira à noite, é dia de jantar fora, de ir ao cinema!”.

E esta pequena crónica é isso mesmo, uma lição de como nunca se deve desistir. Foi assim que me dirigi novamente para o Centro Vasco da Gama. E foi assim que fui novamente parar a Sta Iria.

Onde não voltei a pedir indicações no mesmo café por vergonha. E depois de voltas e voltas lá me pus novamente no caminho para Lisboa, onde apanhei logo que pude o desvio para a ponte Vasco da Gama. Durante o caminho tentei sublimar a frustração com um pensamento religioso: “Será Sta Iria a minha Santa Padroeira? Estaria ela a querer comunicar-me algo?”. Estava decidido, nessa noite investigaria a fundo sobre essa Santa, mas tudo se esfumou e esqueceu numa sandes do Pans & Company que comi alarvemente na estação de serviço. E esqueci a Santa. O que eu tinha era apenas fome.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A casa de Elvas

Foi uma vez mais numa aula do Prof. Duarte. Desta vez tínhamos que fazer uma composição carregada de figuras de estilo sobre um tema à nossa escolha. Um tema que nos fosse caro, daqueles que nos fizesse os olhos brilhar. Lembro-me do Pedro Inocêncio ter apresentado um texto que o professor considerou belíssimo. Um texto que versava sobre… futebol. Lembro-me da volúpia nas palavras do Pedro a descrever a “bola redondinha a rolar na relva verde e fofinha”. Atributos que, pensei eu, o Pedro fosse um dia aplicar a outros entes que não a relva, mas disso saberá ele.

De mim, sei que escrevi sobre a minha rua.

Isso mesmo, sobre a rua Domingos Lavadinho, a rua onde fica a famosa casa de Elvas. Mais ainda, essa famosa casa de Elvas, que foi durante anos a minha casa. Era de facto uma vivenda geminada, onde de um lado vivia a família da dona Gertrudes – conhecida na comunicação social por Gertrudes F. – e do outro vivíamos nós, a minha família no andar de cima, e o cabeleireiro Carlos Luciano no andar de baixo que era a cave. Não era uma vivenda redondinha e fofinha, mas não era de forma nenhuma o palco onde eventos hediondos vieram mais tarde supostamente a dar à luz. Era aliás muito complicado que esquemas desses lá se passassem dada a própria configuração da rua, que ficava exposta para um descampado onde regularmente jogávamos à bola e de onde se via tudo o que por aquela rua circulava. Não era com discrição que um carro de vidros fumados passaria por ali. Toda a vizinhança ficaria a saber e levantaria logo um sobrolho de suspeita.

Mas enfim, não era obviamente sobre essa matéria que consistia a minha composição. Era sim sobre outros aspectos, como por exemplo, os cães que viviam na minha rua. Ainda hoje me lembro do nome de alguns, como o “Alof” dos “Picão de Abreu”, o “Tigre”dos “Bravinho”, ou o “Tico” dos “Moura Fernandes”.

Lembro-me que o professor Duarte também gostou da minha composição, que anotou a vermelho, no canto superior direito, como “texto bonito e rico”, apesar de ter rasurado a vermelho a minha última frase, que era “Assim uma ruazinha é bela”, como se o professor dissesse “Escusava era de acabar isto assim”. Dou, e dei na altura, toda a razão ao professor Duarte. Porém, era na altura, e é ainda hoje, uma inevitável parte estruturante do meu ser. Acabar mal as coisas. Acabá-las à pressa. Falho sempre no fecho, na conclusão das coisas. Uma espécie de Nuno Gomes da literatura.

Mas todos merecem uma segunda oportunidade. E vou aqui concluir a composição sobre a minha antiga rua, a rua da famosa casa de Elvas.

Nessa vivenda, a paredes-meias com a casa da Gertrudes F., em plena rua Domingos Lavadinho, vivia um mágico.

Esse mágico chegou a Elvas por volta de 83, trazendo com ele duas famílias coladas com adesivo, como se de uma singular família se tratasse.

Ele era médico, e vinha casado de fresco com outra médica, que era a minha mãe. E trouxeram com eles uma magia que transformou um velho edifício no centro histórico de Elvas num hospital.

Traziam, também, de herança, dois filhos cada. E partiu-se assim para aventura, para a ilusão de que seriamos uma única família. Essa aventura começou ainda antes em Setúbal, quando observei com os meus tenros olhos que um homem tinha chegado para salvar a minha mãe, que apesar de existir numa peça única eu via-lhe bem as suturas que juntavam todas as peças numa figura só. Tinha-se reerguido, sim. Tinha dois filhos para cuidar. Mas quando um copo se solta das nossas mãos e se estilhaça no chão, poderemos colar todos os fragmentos, mas dificilmente diremos que o copo nunca se partiu.

Pelo meu lado, posso dizer que assisti prematuramente ao vidro a fundir-se, ao planeamento desta aventura a reunir-se, quando começámos a receber visitas daquele mágico quando ainda vivíamos no apartamento da 22 de Dezembro, em Setúbal. Desde então, eu e o meu irmão habituámo-nos à presença daquele senhor, que não intitulei de mágico apenas no sentido curandeiro do termo, ou seja, apenas por ser médico e ter sido visto em Elvas como tal.

Ele era de facto um mágico, no sentido prestidigitador do termo. Pelo menos foi com esses olhos que eu e o Carlos adoptámos, naquela altura, o nosso padrasto, conhecido em Elvas por Dr. Pacheco.

Maravilhava-nos, especialmente, os fabulosos truques de cartas. Como por exemplo aquele em que os reis de cada naipe combinam assaltar um banco. O banco era o próprio baralho de cartas e os diferentes reis enfiavam-se em diferentes partes do baralho, cada um com uma missão específica, sendo que o último ficava no topo do edifício de vigia, não fosse chegar a polícia. E fazia parte desse truque que a polícia chegasse sempre para surpreender o assalto, provocando o assobio de alerta do rei que se encontrava no topo e, de repente, TRUZ! Diante dos nossos olhos pueris, reincidentes de espanto, os reis de todos os naipes encontravam-se agora todos no topo do edifício, prontos para fugir no helicóptero que entretanto chegava para o seu salvamento.

O que nos encantava nos truques daquele mágico não era muitas vezes apenas o truque em si, mas sim a forma como a história era contada. Por exemplo, no truque dos reis assaltantes de bancos, nós vivíamos aquilo como uma espécie de Oceans Eleven.

Mas claro que, mesmo sendo nós crianças, topávamos que nem todos os truques lhe saíam bem. Por exemplo aquele em que o mágico Pacheco separava um polegar do resto da mão, com a ajuda da outra mão.

Aquilo tresandava a tanga.

Ou mesmo aquele truque, que levou mais tempo a preparar, que foi o aparecimento, na nossa sala de estar, de uma lareira. Uma lareira que trouxe mais magia ao nosso ambiente natalício, complementando ainda mais a árvore de Natal cheia de bolas coloridas e os fabulosos presépios que o Pacheco concebia. Mas que trouxe também muito fumo para dentro da própria sala. Ao ponto de termos recorrentemente de fazer a gestão “quente em apneia” versus “frio sem monóxido de carbono”. De tal forma era a fumarada que uma vez uns vizinhos estiveram quase para chamar os bombeiros.

Mas enfim, nem tudo corre bem na vida. Como o próprio Pacheco sabiamente cantarolava, durante as viagens que fazíamos nas nossas férias grandes:

“Aeroplim, aeroplim, aeroplano

Subiu ao ar, subiu ao ar

Caiu ao mar

Foi pró catano.”

A verdade é que na vida muitas coisas vão, realmente, pró catano. E foi assim que o adesivo, que colava as duas famílias numa só, se soltou.

A culpa terá sido, obviamente, de todos. E também de ninguém. Mas nestas coisas da culpa gosto sempre de reivindicar a minha quota-parte de responsabilidade. E pelo meu lado não facilitei nada a vida ao jovem casal por ser desde cedo um miúdo difícil, ou, utilizando linguagem técnica de pedo-psicologia, execrável. E o facto de ter na altura 8 anos de idade não é desculpa. Com 8 anos já Amadeus Mozart tinha composto “n” sinfonias, com 8 anos já uma ratazana deu à luz centenas de ninhadas, com 8 anos já o meu cão tinha sobrevivido a uma diabetes e a uma insuficiência cardíaca.

Ditou a história que o Pacheco fosse o último de nós a abandonar a casa. E hoje imagino como terá sido. O seu último passo, deixando atrás de si uma casa condenada a ser apenas um espaço. Um espaço com uma lareira que não fumegava bem, mas um espaço onde se aspirava magia.

Anos mais tarde, calhou num Natal eu voltar à rua Domingos Lavadinho. Parei diante da casa e senti, por dentro, um frémito daquele calor cor-de-laranja, daquela árvore de Natal debaixo da qual se estendia o enorme presépio, dos cânticos natalícios saídos da televisão, entrecortados pelo ladrar dos cães do bairro, o Alof, o Tany, o Tigre, o Tico...

E pensei, cá para comigo, “assim uma ruazinha é bela”.

Cinefagia

É capaz de ser, de todas, a minha pior psicose. Eu sobrevivo sem cinema, mas não vivo sem cinema.

Lembro-me que em Elvas havia um senhor que era o maior craque de matraquilhos que conhecíamos, embora muito raramente o vira a jogar. Pelo contrário, ele é que estava sempre especado a observar os jogos dos outros, fossem bons, maus, ou mesmo jogos de matraquilhos de péssima qualidade.
Não sei qual era a sua ocupação, mas tinha bastante tempo para estar no Nautilus a ver todos os jogos que lá se faziam. Muitas vezes íamos jogar matrecos durante os furos das aulas e ele lá estava, atento a todas as nossas jogadas.

Um dia alguém lhe perguntou como é que ele tinha paciência para observar os nossos jogos. Ele respondeu que não importava se os jogos eram bons ou maus, ele tinha é que ver matraquilhos.
Na altura vi nele uma espécie de filósofo, embora não tivesse atingido exactamente o que é que ele queria dizer.

Mais tarde eu percebi que, bom ou mau, eu preciso é de viver num mundo com cinema. Que o mundo sem cinema não fazia sentido. De preferência, com bom cinema.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Volta, Serenity

Relativamente ao "parou-parou-parou", retiro o que disse. Vi recentemente o filme que saiu da série Firefly, o filme chamado "Serenity", depois de Firefly ter sido drasticamente cancelada pela Fox há uns anos atrás.

Ao ver o filme, e nos extras do DVD todas as entrevistas aos actores, produtores e, sobretudo, ao criador Joss Whedon, é difícil ser indiferente à entrega incondicional àquele projecto, que não aceitaram que morresse assim, com ordens vindas de cima.

E à Fox o estalo de luva branca veio de baixo. A adesão de fãs à série Firefly foi impressionante.
Uma série cancelada acabou a resultar numa série de culto.

E com o apoio e pressão dos fãs a série acabou por dar em filme, o primeiro filme baseado numa série falhada.

Um feito. Joss Whedon dirige-se numa entrevista do DVD a cada um dos fãs para que divulguemos Firefly se acharmos que vale a pena.

E eu acho que vale a pena.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Firefly

Este cartaz da interessante série, ainda pouco divulgada entre nós, chamada "Firefly", parece-me tão adequado quanto esta série de ficção científica nos lembra os clássicos Starwars.

É uma pena que se tenha ficado pelos primeiros 14 episódios e tenha terminado abruptamente. Apesar de não estar enraizada num argumento de excelência, tinha aspectos muito interessantes, nomeadamente o grupo indigente de personagens que cruza as galáxias à procura de trabalhos ilícitos, nomeadamente de contrabando, à revelia dos poderes instalados de uma hegemónica Aliança. Esta é uma ideia batida nos filmes e séries de ficção científica, mas não deixa sempre de gerar interesse.

Nós gostamos de poderes absolutos e intransponíveis que nos sufocam. Gostamos de viver no interstício desses mundos, no limiar do perigo de sermos engolidos pela treva. Gostamos desse sabor de planear, no nosso refúgio, o recontro com uma força organizada, impossível de vencer.

Em Firefly o refúgio tem o nome de Serenity, e é a velha carroçaria de uma nave espacial.

Ao acabar de repente, muito ficou por concluir, e mais ainda, por explicar, em Firefly. Talvez tenha sido uma sorte porque, por outro lado, o meu feeling era que quanto mais informação revelasse mais a série se banalizava e afundava em clichês.

Como diria o João Kléber: "Parou-Parou-Parou!"