a-chave-dicotómica

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terça-feira, 19 de agosto de 2014

Oh Captain...


quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Porto

Parado à tua porta.
Estás longe de imaginar que estou aqui,
Parado, à tua porta.
Eu não sei se estás aí,
Não vou tocar-te à porta.
Estou apenas aqui, sentado
Parado
À tua porta.

Entra (dir-me-ias tu)
Por favor, entra
(dir-me-ias, se soubesses
Que estou aqui ao lado
No carro
Estacionado
À tua porta).

Não sejas tão duro contigo
(Dirias)
Dá-te um momento
Bebe um copo comigo
(Dirias, se soubesses
Que estou aqui, parado
À tua porta).

A porta de onde saí, em tempos
Talvez de mal contigo, não sei
(já foi há tanto tempo)
A porta onde sempre me medi
Esse lugar de onde fugi e que é hoje
O meu porto de abrigo.

Salmão traído, assim me sinto
Todo eu, piloto automático
Rodas de automóvel
A guiarem-me a ti.
Ao teu portão: o teu portal
Sorumbático, retraído
Grave, comedido:
Entra, por favor (dir-me-ias tu)
Escuta aquilo que te digo:
Tira os olhos do chão
Não sejas tão duro contigo:
Dir-me-ias, se soubesses
Que aqui estou, imóvel
Hesitante, no automóvel
Estacionado
À tua porta.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Confabulações sobre o bolo alimentar

Esgueiro-me dia-a-dia pelos meandros de um cenário “Pacman”. Mas não são fantasminhas que me perseguem, são pessoas que me interpelam enquanto mastigam. Pessoas, que me obsequiam à mesa com o conteúdo da boca ou, tecnicamente falando, com o seu bolo alimentar.
Ora, que tenho eu a dizer? Tenho a dizer que gosto. Gosto do bolo alimentar, porque é moído e esbranquiçado. Porque é amalgamado, por vezes com grumos amarelentos. Pois sim, que dizer? Agrada-me, porque me mostra como também eu sou feito por dentro, revela-me o que lá vai no interior da boca. Nada como alguém nos chamar à razão, fazer-nos baixar à Terra com esta lição de humildade:
Sermos forçados a ver, sem peneiras, com crua animalidade, aquilo que andamos a rebolar: o nosso próprio bolo alimentar, é isso que vemos. Assim o extrapolamos, a partir do bolo alimentar dos outros que à nossa frente se alimentam.
E esta é uma entre outras razões por que aprecio comer sozinho. É esta minha sobranceria de quem se sente bem consigo e dispensa ver-se por dentro.
Esquisitices de menino bem. Bizarrias de sociopata, esta mania de quem aprecia saborear um alimento sem ter que pensar no processo intrínseco de trituração e secreções digestivas. Coisas de homem mal crescido, irascível, neurótico, inadequado, misantrópico, a quem faz confusão entabular diálogos com empapados de carne a caminho de se fazerem quimo e quilo – e sabe-se lá mais o quê em aventuras peristálticas radicais.

Perdoem-me esta mania, presunçosa e louca, a de saborear comida que se imagina perfeita nas mucosas da boca. Melhor será nem imaginar. Por isso não gosto que me dêem ideias, não me levantem esse véu da ignorância, caros compinchas, que por volta do meio-dia e meia me convocam para almoçar, sabem que é sempre a mesma dança:
“Pena que tomei tão tarde o pequeno-almoço”, ou qualquer que seja a desculpa para não almoçar socialmente, porque acho, na minha modesta opinião, de que se trata de duas coisas diferentes: uma é comer, outra conversar. Contrariamente a muita gente, gosto de comer sozinho. Aproveitar o tempo para pensar, ouvir rádio, observar a vida em volta - qualquer coisa desde que não um bolo alimentar, por favor, tudo menos o bolo alimentar de alguém na minha frente.
Ou talvez, em alternativa, comer e conversar - mas com algumas regras. Simples medida de gestão: só intervir oralmente na conversa depois de se engolir aquilo que se levou do pratinho à boca. É isso, bolas: ovo de colombo. Solução simples, óbvia, genial.

Como raio nunca ninguém se lembrou disso?

Vamos, deliciemo-nos, juntos, com o filete. E com o arroz de feijão. E o empapado que já foi manteiga e pão. Deliciemo-nos, pois, com a mescla de filete & feijão & arroz & manteiga & pão, mas guardemo-la dentro de nós. Não precisamos de o partilhar.

Guardemos, pois, se for possível, não der trabalho, nem muito massar, guardemos pois, esse fantasminha, mania minha, o bolo alimentar.

sábado, 2 de agosto de 2014

The double


Quando escrevi Anima lusa tinha em mente tecer uma metáfora acerca do jugo do ajustamento económico imposto aos países do sul da Europa, pelos tais alienígenas aracnídeos, que falavam um português com um sotaque estranho: os tais ZeckenKöpfen. Estava ciente da ambiência soturna e apocalíptica ao estilo da “Feira dos Imortais” (de Enki Bilal), que imprimi ao conto. Mas só quando vi “Enemy” de Denis Villeneuve, baseado no romance “O homem duplicado” (2002), de José Saramago, é que percebi de onde vinham as raízes das minhas verdadeiras influências.
Não pude deixar de encontrar alguns pontos de ligação entre a Lisboa invadida que concebi e o caos calmo da cidade de Toronto recriada no filme de Villeneuve, ambas dominadas por uma força sub-reptícia, manietadas por uma teia invisível.

SPOILER ALERT:
Na verdade, depois de rever “Enemy”, e de ler algumas críticas sobre este filme, clarificou-se na minha cabeça que é uma obra filogeneticamente enraizada no tema “Invasion of Body Snatchers”, o qual já deu tantas versões e variantes. Parece-me que, sem ter ainda lido “O homem duplicado”, que Javier Gullón (argumentista) e Villeneuve o adaptaram fazendo-o coalescer com a família de temas que nasceram da obra de 1955 de Jack Finney. Mas não tenho a certeza disso, nem nunca terei, e essa é uma parte do charme deste filme, que convém não desmascarar. Está longe de ser um filme perfeito, falha em ter um enredo sólido e uma progressão dramática eficaz, parece que se perde ali no último terço, o protagonista esvazia-se, perde o “drive”, dilui-se na história. Mas é um filme que tem “qualquer coisa”, que de resto é para mim o mais importante que um filme deve ter – essa tal qualquer coisa, o elemento que subjaz para além da história. Algo que nos põe em dúvida, até em causa, e nos faz reflectir acerca daquilo que acabámos de assistir no ecrã.
Seja como for, já tenho mais um livro para ler nas férias.