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terça-feira, 8 de maio de 2012

som do frigorífico

E por falar em poesia (do Sam Mendes), vou revisitar a fruta do meu quintal, fruta já antiga e, portanto, com laivos de adolescência: 

o som do frigorífico

Lúcido
Sempre lúcido
Estupidamente lúcido.
E no entanto só vejo o que os olhos magicam
Transformam e reinventam
Os argumentos visuais
Sobre os quais
Permaneço
Obsessivamente lúcido.

Tento embriagar-me, mas não consigo
Tento refugiar-me
Longe dos pensamentos mas
É uma perda de tempo, continuo lúcido
Odiosamente.

Em último recurso
Absorvido num ócio flácido e demente
Sorvo toda a turbulência do ruído
Até restar
A mudez picante do silêncio
E o coração regula-se
Com o ritmo
Do pêndulo do relógio, mas não o oiço
E abstraio todo o som, ficando aquele
Que vivo com, e nunca reparo
O som da pele
O som do frigorífico.

Os olhos não vêem, os ouvidos não ouvem
A mão direita sente no abstracto
O rijo tacto da maçã,
A bexiga assola o cérebro
Intoxicada, mas não ligo
Desobedeço
E regozijo de uma dentada na maçã
Sentindo os ácidos porosos
Ruidosamente na boca
Tenho agora na mão direita
Uma dentada na maçã, a Eva na minha mão.

O Adão? Não
Não quero esse cabrão
Quero a serpente
Não tenho medo do engano, só dos que vivem do engano
O diabo enganei-o eu
E rói-se de inveja de mim.

Tenho uma serpente no quintal
É essa criatura a maldição
Ou as dores de parto que o são?
Que espera alguém de quem vem
do ventre senão de um estranho?
É isso,

Sou um estanho
Sou o mal
Sou traição.

Sou serpente entre tantas outras
Brotei de um ventre igual a tantos outros
Sou ninguém como todos os que me rodeiam
Sou demente,
Um canal
Onde tudo vem, tudo vai, e nada passa
Aliás
Como tantos outros.

Sou o mal genuíno porque
Não me enquadro em nada do que vejo e do que faço
E que todos fazem
Sou ódio, mas não odeio
Não me revejo em nada, a tudo estou alheio,

Sou maldição
Sou animal
Sou inveja,

Espero portanto
Por uma explicação, ou um sinal que seja
Uma mão
Um papão
Algo que se veja
Ou
Trincarei a maçã até ao caroço
E os restos, no frigorífico
Apodrecerão.


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