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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A casa de Elvas

Foi uma vez mais numa aula do Prof. Duarte. Desta vez tínhamos que fazer uma composição carregada de figuras de estilo sobre um tema à nossa escolha. Um tema que nos fosse caro, daqueles que nos fizesse os olhos brilhar. Lembro-me do Pedro Inocêncio ter apresentado um texto que o professor considerou belíssimo. Um texto que versava sobre… futebol. Lembro-me da volúpia nas palavras do Pedro a descrever a “bola redondinha a rolar na relva verde e fofinha”. Atributos que, pensei eu, o Pedro fosse um dia aplicar a outros entes que não a relva, mas disso saberá ele.

De mim, sei que escrevi sobre a minha rua.

Isso mesmo, sobre a rua Domingos Lavadinho, a rua onde fica a famosa casa de Elvas. Mais ainda, essa famosa casa de Elvas, que foi durante anos a minha casa. Era de facto uma vivenda geminada, onde de um lado vivia a família da dona Gertrudes – conhecida na comunicação social por Gertrudes F. – e do outro vivíamos nós, a minha família no andar de cima, e o cabeleireiro Carlos Luciano no andar de baixo que era a cave. Não era uma vivenda redondinha e fofinha, mas não era de forma nenhuma o palco onde eventos hediondos vieram mais tarde supostamente a dar à luz. Era aliás muito complicado que esquemas desses lá se passassem dada a própria configuração da rua, que ficava exposta para um descampado onde regularmente jogávamos à bola e de onde se via tudo o que por aquela rua circulava. Não era com discrição que um carro de vidros fumados passaria por ali. Toda a vizinhança ficaria a saber e levantaria logo um sobrolho de suspeita.

Mas enfim, não era obviamente sobre essa matéria que consistia a minha composição. Era sim sobre outros aspectos, como por exemplo, os cães que viviam na minha rua. Ainda hoje me lembro do nome de alguns, como o “Alof” dos “Picão de Abreu”, o “Tigre”dos “Bravinho”, ou o “Tico” dos “Moura Fernandes”.

Lembro-me que o professor Duarte também gostou da minha composição, que anotou a vermelho, no canto superior direito, como “texto bonito e rico”, apesar de ter rasurado a vermelho a minha última frase, que era “Assim uma ruazinha é bela”, como se o professor dissesse “Escusava era de acabar isto assim”. Dou, e dei na altura, toda a razão ao professor Duarte. Porém, era na altura, e é ainda hoje, uma inevitável parte estruturante do meu ser. Acabar mal as coisas. Acabá-las à pressa. Falho sempre no fecho, na conclusão das coisas. Uma espécie de Nuno Gomes da literatura.

Mas todos merecem uma segunda oportunidade. E vou aqui concluir a composição sobre a minha antiga rua, a rua da famosa casa de Elvas.

Nessa vivenda, a paredes-meias com a casa da Gertrudes F., em plena rua Domingos Lavadinho, vivia um mágico.

Esse mágico chegou a Elvas por volta de 83, trazendo com ele duas famílias coladas com adesivo, como se de uma singular família se tratasse.

Ele era médico, e vinha casado de fresco com outra médica, que era a minha mãe. E trouxeram com eles uma magia que transformou um velho edifício no centro histórico de Elvas num hospital.

Traziam, também, de herança, dois filhos cada. E partiu-se assim para aventura, para a ilusão de que seriamos uma única família. Essa aventura começou ainda antes em Setúbal, quando observei com os meus tenros olhos que um homem tinha chegado para salvar a minha mãe, que apesar de existir numa peça única eu via-lhe bem as suturas que juntavam todas as peças numa figura só. Tinha-se reerguido, sim. Tinha dois filhos para cuidar. Mas quando um copo se solta das nossas mãos e se estilhaça no chão, poderemos colar todos os fragmentos, mas dificilmente diremos que o copo nunca se partiu.

Pelo meu lado, posso dizer que assisti prematuramente ao vidro a fundir-se, ao planeamento desta aventura a reunir-se, quando começámos a receber visitas daquele mágico quando ainda vivíamos no apartamento da 22 de Dezembro, em Setúbal. Desde então, eu e o meu irmão habituámo-nos à presença daquele senhor, que não intitulei de mágico apenas no sentido curandeiro do termo, ou seja, apenas por ser médico e ter sido visto em Elvas como tal.

Ele era de facto um mágico, no sentido prestidigitador do termo. Pelo menos foi com esses olhos que eu e o Carlos adoptámos, naquela altura, o nosso padrasto, conhecido em Elvas por Dr. Pacheco.

Maravilhava-nos, especialmente, os fabulosos truques de cartas. Como por exemplo aquele em que os reis de cada naipe combinam assaltar um banco. O banco era o próprio baralho de cartas e os diferentes reis enfiavam-se em diferentes partes do baralho, cada um com uma missão específica, sendo que o último ficava no topo do edifício de vigia, não fosse chegar a polícia. E fazia parte desse truque que a polícia chegasse sempre para surpreender o assalto, provocando o assobio de alerta do rei que se encontrava no topo e, de repente, TRUZ! Diante dos nossos olhos pueris, reincidentes de espanto, os reis de todos os naipes encontravam-se agora todos no topo do edifício, prontos para fugir no helicóptero que entretanto chegava para o seu salvamento.

O que nos encantava nos truques daquele mágico não era muitas vezes apenas o truque em si, mas sim a forma como a história era contada. Por exemplo, no truque dos reis assaltantes de bancos, nós vivíamos aquilo como uma espécie de Oceans Eleven.

Mas claro que, mesmo sendo nós crianças, topávamos que nem todos os truques lhe saíam bem. Por exemplo aquele em que o mágico Pacheco separava um polegar do resto da mão, com a ajuda da outra mão.

Aquilo tresandava a tanga.

Ou mesmo aquele truque, que levou mais tempo a preparar, que foi o aparecimento, na nossa sala de estar, de uma lareira. Uma lareira que trouxe mais magia ao nosso ambiente natalício, complementando ainda mais a árvore de Natal cheia de bolas coloridas e os fabulosos presépios que o Pacheco concebia. Mas que trouxe também muito fumo para dentro da própria sala. Ao ponto de termos recorrentemente de fazer a gestão “quente em apneia” versus “frio sem monóxido de carbono”. De tal forma era a fumarada que uma vez uns vizinhos estiveram quase para chamar os bombeiros.

Mas enfim, nem tudo corre bem na vida. Como o próprio Pacheco sabiamente cantarolava, durante as viagens que fazíamos nas nossas férias grandes:

“Aeroplim, aeroplim, aeroplano

Subiu ao ar, subiu ao ar

Caiu ao mar

Foi pró catano.”

A verdade é que na vida muitas coisas vão, realmente, pró catano. E foi assim que o adesivo, que colava as duas famílias numa só, se soltou.

A culpa terá sido, obviamente, de todos. E também de ninguém. Mas nestas coisas da culpa gosto sempre de reivindicar a minha quota-parte de responsabilidade. E pelo meu lado não facilitei nada a vida ao jovem casal por ser desde cedo um miúdo difícil, ou, utilizando linguagem técnica de pedo-psicologia, execrável. E o facto de ter na altura 8 anos de idade não é desculpa. Com 8 anos já Amadeus Mozart tinha composto “n” sinfonias, com 8 anos já uma ratazana deu à luz centenas de ninhadas, com 8 anos já o meu cão tinha sobrevivido a uma diabetes e a uma insuficiência cardíaca.

Ditou a história que o Pacheco fosse o último de nós a abandonar a casa. E hoje imagino como terá sido. O seu último passo, deixando atrás de si uma casa condenada a ser apenas um espaço. Um espaço com uma lareira que não fumegava bem, mas um espaço onde se aspirava magia.

Anos mais tarde, calhou num Natal eu voltar à rua Domingos Lavadinho. Parei diante da casa e senti, por dentro, um frémito daquele calor cor-de-laranja, daquela árvore de Natal debaixo da qual se estendia o enorme presépio, dos cânticos natalícios saídos da televisão, entrecortados pelo ladrar dos cães do bairro, o Alof, o Tany, o Tigre, o Tico...

E pensei, cá para comigo, “assim uma ruazinha é bela”.

4 comentários:

  1. O Senhor que ficava no Nautilus a ver jogar matraquilhos é o Henrique Sem-Dentes. Tem barba e não jogava aos matraquilhos porque tinha pouco dinheiro e sempre recusou trabalhar.

    É o senhorio do Bar Tex-Mex do Carlos Silveirinha na Rua dos Chilões.

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  2. Confirmo a informação do Melro. Também era conhecido por Xatcho...

    Nessa altura, eu era um dos que jogava matraquilhos, muitas vezes com o Gustavo. E lá estava ele, sempre, a ver-nos jogar.

    Constatei, das poucas vezes que joguei com ele que era dos melhores defesas que o matraquilho podia ter. Hiper-calmo! "Não bebes café!" - Dizia-se na altura...

    Bonito texto Guilherme. Muito bonito!

    Saudades dos tempos passados na Rua Domingos Lavadinho!!!

    Gostei sobremaneira do "quente em apneia". Quanto a isso... simplesmente... LOL!!!! Muito bom!

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  3. Obrigado, Zé Melro e Nuno Vivas, pelos vossos comentários e por avivarem a memória acerca do personagem dos matraquilhos: o "Henrique Sem-Dentes", também conhecido por "Xatcho".

    Ele de facto "não bebia café"...

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  4. A versão completa (semi-censurada):

    Aeroplim, aeroplim, aeroplano
    Subiu no ar, caiu no mar, foi p'ó catano

    O avoador, o avoador que o avoava
    Era dos tais, era dos tais, q'as não cortava

    Tchim, pó, pó, na p****cha da menina
    Pó, pó Tchim, na p****cha da menina


    (Contribuição de um "avoador" :D a este blog :D)

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