Dizia-me a minha avó - avó bem falante - com bom
conhecimento da língua. “Deixá-lo, Pedro”, dizia-me, sempre que em conversa eu
referia uma qualquer contrariedade ou injustiça que havia surgido no meu
caminho. Um caminho que a minha avó previa auspicioso - não é assim com todos,
e todas, os avôs e as avós?
Nós, os netos, somos as pessoas mais capazes do mundo, temos o mundo inteiro à nossa espera, para que vençamos. Vençamos por nós, mas também por eles, que em nós depositam toda a fé e toda a confiança. Isto porque nós, os netos, somos apenas parte do mundo que eles conhecem, mundo que eles cada vez menos conhecem, mundo cheio de outros netos, que connosco competem na mesma corrida onde apostam os avós.
“Deixá-lo, Pedro”, dir-me-ia a minha avó. E também diria, cada vez, aliás, mais amiúde - praticamente sempre que a via - “Pedro, essa é a tua verdade. Mas há muitas verdades. Há a nossa verdade... e há a verdade dos outros”, repetia-se, com olhar filósofo, quando ainda tinha força física e capacidade mental para o fazer. Ou seja, há coisa de dois anos, vamos lá. Esquecendo-se, já nesses tempos que, quando me dizia “Pedro, essa é a tua verdade, mas também há a verdade dos outros” estava, na verdade, a citar-me. De facto, bastantes anos antes ainda, a minha avó diria essa mesma frase a quem a quisesse ouvir - quase sempre ao meu tio e na minha frente - só que ressalvando, num claro abrir de aspas, “como me disse uma vez o teu sobrinho Pedro, ‘essa é a tua verdade, mas também há a verdade dos outros’”.
Isto, não imaginando a minha avó que, ao citar-me com todo o
orgulho e devoção, estava na verdade a citar o meu pai, no dia em que fixei,
com memória de papagaio, a frase que o ouvi dizer a um dos meus irmãos (habitualmente o mais hirto e inflexível nas
suas convicções) durante uma discussão acesa: “Essa é a tua verdade, mas também
há a verdade dos outros”.
Não que a minha avó se importasse de citar o meu pai, na verdade considerava-o um sábio e citá-lo-ia na mesma, mas também não me chateei por aí além de arrecadar com os louros durante todo este tempo. Ser eu o citado, “a citação da citação”. Assim como também não me importei quando deixei de ser eu a autoridade, o falso sábio, autor-usurpador da frase, o alvo da citação. Até porque, poucos anos depois, já era a mim que a minha avó dirigia, repetidamente, a frase: “Pedro, essa é a tua verdade. Mas também há a verdade dos outros”. Frase que ela havia incorporado, à qual se havia agarrado, com a réstea das suas forças, numa memória cada vez mais encarquilhada, esboroada, nebulosa. Frase que havia feito sua, dito que passou a ser um slogan, ensinamento de vida, importante mensagem a transmitir, em cada contacto esporádico com os netos. Expressão que fazia sempre questão de dizer, para ela própria não se esquecer.
Até que começou a esquecer-se. A não conseguir expressar a citação por inteiro, a lembrar-se apenas que havia uma certa frase, a tal frase, que já não sabia bem como era, restando-lhe um olhar frustrado e melancólico, resignando-se à memória esparsa e rarefeita. Mas eu então proferia, novamente, a frase. E ao repetir-lhe a frase, reavivava-lhe a memória. A minha avó relembrava a mensagem filosófica que era a dela, e que alguns anos antes havia sido minha. Minha, do neto que, por sua vez, tinha feito sua a frase do seu pai, uma frase que o pai havia dito casualmente, “en passant”, numa conversa em família.
E que interessa, então, de onde veio a frase? Avó, a frase era tua. Era e é a tua frase.
Última avó viva que ainda tenho, e cada vez menos a pessoa que eu conhecia, mas ainda é ela. Uma avó que não seria uma pessoa perfeita. Com certeza, eu também não o sou. Avó que nem sempre tomou o melhor partido. E eu, será que sempre o tomei? Quem sou eu para julgar? E que interessa isso agora?
Quando a vejo, sempre que a visito no lar, lembro-me apenas da
avó que esteve lá, sempre, presente, na minha infância, na minha adolescência. Não
quero ser injusto para os outros avós. Os de Setúbal deram-me o apoio, a
proximidade, os de Viseu deram-me todo um calor aconchegante quando lá ia, e
impregnaram-me com o encanto estruturante da ruralidade (e há ainda a avó da Madeira - história comprida...).
Mas esta avó, a que hoje ainda me resta, lembrar-me-ei dela na sua pose direita, sentada num cadeirão, com tiques de aristocrata, olhar vivo e entusiasta a mostrar-me, num Atlas pousado na carpete da sala, a geografia política da altura. Uma enorme União Soviética a alastrar-se perigosamente no mapa - ela era mais do lado dos americanos, claro está. Mas, por outro lado, quando me penteava fazia o risco do lado esquerdo. O risco, esse, tinha que ser de esquerda, explicava-me antes de sairmos para o café do Hotel Esperança, na Luísa Todi, em Setúbal. Café que ela e o meu avô tomavam com o “cheirinho” que traziam clandestinamente de casa. E eu, e o meu irmão e os meus primos, não ficávamos atrás. A nós pediam-nos um garoto. Ou então ficávamos com o fundinho do café, armados em grandes. E o meu avô, para nos fazer rir, havia sempre de pedir ao “Chefe” que servia, “um palito, um copo de água e o jornal de ontem”.
Só sei que nunca me hei-de esquecer da esplanada do café Esperança. Já não bebo garotos, mas sou aficionado em café, e apaixonado por toda a ficção que se inspire na guerra fria e ameaça nuclear. Certo é que, parte daquilo que sou, flui nas mãos que, em tempos, tinham força suficiente para abrir os livros pesados e espessos onde se encontravam mapas-mundo, pinturas do Cézanne e do El Greco. Parte daquilo que sou será sempre o garoto que pernoitava na casa dos meus avós, que lhes vasculhava as arcas e as gavetas, e as portas espelhadas dos pequenos armários das casas-de-banho. Parte daquilo que sou será a criança que se cortou na lâmina de barbear do meu avô, que experimentei à socapa. Parte daquilo que sou, ainda sente o aroma a leite com chocolate Coqui, e das torradas (as “chaplas”) com marmelada caseira e queijo de Rabaçal, e tem tatuado por dentro o padrão azul dos azulejos da cozinha. A cozinha perfeita dos meus avós, com um pequeno fogão, onde trabalhavam umas mãos agora trémulas, mãos que agora se desvanecem.
Resta-me agradecer-te, avó. Reconhecer o sortudo que hoje
sou por te ter tido, por te reviver em memórias. A ti e aos outros avós.
Obrigado, portanto, a todos os meus avôs e avós.
“Deixá-lo, Pedro”. Sim, deixá-lo, eu sei. É a minha verdade.
Uma muito bonita e justa homenagem à avó! E aos avós. A vida é cruel....
ResponderEliminarMano
lindissimo....é o que acontece quando um coração de ouro se expressa por palavras (escritas), deparamo-nos com a mais bela homenagem ao amor de neto/amor de avós
ResponderEliminarJ.L. (Woolf)
Este teu post é um regresso à infância, à infância de todos nós que fomos netos. É um post que nos faz chegar a casa, depois de passarmos a tarde a brincar lá fora, e sentir aquele cheirinho do bolo, ainda no forno, à nossa espera. Obrigada por me transportares no tempo. Sorri em todas as linhas.
ResponderEliminarParabéns pelo texto, subscrevo o comentário da Adriana quando diz que sorriu em todas as linhas... Comigo aconteceu o mesmo, se bem que não tenha recordação de nenhuma avó, ...só do meu avô paterno que recordo agarrado a um sacho de cabo muito comprido e com a pá de reduzidas dimensões, encostado ao muro do sr. Feliciano, em frente à taberna da D.Júlia ! Mas este comentário contém um desafio. Deixaste aberta/entreaberta a possibilidade de uma história comprida, saborosa, que me lembra Jorge Amado, sabe-se-lá porquê, talvez porque deveria ser contada na taberna da D.Júlia ao redor de uma garrafa de branquinha com as moscas a zumbir...meias bêbedas, as malucas, andaram a beber a branquinha do fundo dos copos... -- Qual é a história da avó da Madeira ? Fica o desafio !!!
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