Quem
quiser ver "O Inferno" de Hieronymus Bosch não precisa de se deslocar
ao Museu do Prado, em Madrid, que nem é uma viagem assim tão longa, mas basta
tão somente experimentar visitar o Fórum Montijo, num sábado, ou num domingo, à hora da
refeição (almoço, para ser mais preciso).
O
cenário é praticamente o mesmo, excepto aquelas duas famosas orelhas, que se
assemelham a dois testículos, por entre as quais se destaca uma enorme e erecta lâmina de
uma faca. Disso nunca lá vi, mas talvez por não estar muito atento. Atento
estou às mesas de aspecto hediondo, que os gentis cidadãos (às vezes famílias
inteiras) assim deixaram, atulhadas de tabuleiros com os escombros do que foi
uma refeição alarve no McDonalds. Tabuleiros que ali ficaram por arrumar. Essa
tarefa, invariavelmente, é-me delegada a mim, que acabo de chegar com o
meu tabuleiro, sem encontrar um único espaço vazio para me sentar a almoçar.
Mas antes de me debruçar sobre o item menos mau que selecionei como repasto,
é-me proposto, pelo comportamento cívico dos outros, que perca um pouco mais de
apetite a carregar os restos nojentos dos outros para os locais indicados. Muitas vezes com os próprios, que acabaram de abandonar a mesa, a “supervisionar”
a atabalhuada execução da minha tarefa, pois ao mesmo tempo que envergo o meu tabuleiro, tenho ainda que vagar a mesa com os tabuleiros dos outros. Os outros, que me olham com um esgar jocoso quando reparam que a minha tarefa redunda na arrumação do meu próprio tabuleiro no final da refeição.
Um esgar jocoso, um ar superior de quem pensa que estando pago o
almoço, nada mais têm que fazer ou arrumar. Esquecem-se apenas que
não estão num restaurante, mas num espaço comum e aberto, com mais gente a querer sentar-se para ter direito à refeição que se esfria nos braços, refeição que também pagou.
É claro que ninguém os obriga a levarem os tabuleiros, mas é uma questão de civismo, de fazer o que gostariam que também lhes fizessem, caso estivessem eles à espera. E não custa assim tanto, nem é assim tão desprestigiante. Quando termino a refeição e me dirijo à zona onde se arrumam os tabuleiros, não me sinto inferior, ou servil, ou qualquer que seja o rótulo ou classificação desdenhosa que perpassa subliminarmente no olhar sobranceiro de alguns transeuntes.
Bem pelo contrário. É nos escassos momentos em que executo um pequeno gesto que facilita a vida dos outros - estranhos, por sinal - à minha volta, que me sinto parte de uma qualquer elite deste país.
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