Eu confesso, já fui uma dessas pessoas. E não conseguia mesmo compreender
como raça poderiam existir das outras. Daquelas que só olham em frente, que
descuram o ambiente em volta, como se mais ninguém existisse em seu redor. Egos
como balões que enchem, enchem, enchem até as paredes de borracha preencherem nos
corredores dos centros comerciais todos os espaços possíveis. Pessoas que param
no centro das escadas rolantes, não cuidando de deixar vago algum espaço para
que os outros possam seguir o seu caminho. Palavra que eu não entendia isto de
haver gente que não se desviava um milímetro do seu percurso nos passeios de
fim-de-semana. Os outros, se quiserem, que se desviem. Os outros que os
contornem, nem que para isso tenham que empreender uma complexa movimentação de
parábolas e contraparábolas, ou colar-se às paredes dos corredores.
Compreendo que haja uns quantos indivíduos que encontrem nestes pequenos momentos uma oportunidade para medir forças, sobretudo quem está sequioso de um ajuste de contas com as injustiças da vida. Mas então porque é que eu dava sempre comigo a ser o tal, o que se desviava do caminho dos outros? Que caramba, quando vejo um vulto a surgir ao fundo do corredor, parto do princípio que aquele vulto também me vê a mim e, tal como eu, tem muito tempo para corrigir a trajectória da sua passada de uma forma suave, não demasiado submissa, é certo, a ceder-me todo o espaço para eu passar, mas também não tão sobranceira e insolente que me imponha a mim o ônus de ceder o espaço todo a suas altezas. Ceder a sua quota parte, era apenas o que eu pedia, seria esse o lema e não mais do que isso. Ir pela direita, dar a esquerda como nas rotundas, seria quanto a mim uma regra básica de conduta dentro de um centro comercial, tal como, de resto, em qualquer outro lado ou parte do mundo. Mas as pessoas que circulam nos centros comerciais parece que por vezes não são pessoas com obrigações cívicas. Ou assim pensava eu.
Hoje, admito, pessoas destas são pessoas normais. O problema era meu. Eu que sou do material de que são feitos os psicopatas e tenho esta propriedade de ser transparente, invisível para a maior parte das pessoas. É por isso que, também por fora dos centros comerciais, os carros dos outros já não param nas rotundas, cedendo-me a prioridade quando me é devida. A minha transparência propaga-se pelo volante e adere ao carro que conduzo, também ele aparentemente invisível aos olhos dos outros condutores. Será também essa a razão que explica este fenómeno de haver peões, sejam eles jovens, idosos ou pais com crianças pequenas, que cada vez mais vezes se lançam para o meio da estrada e a atravessam, fora das passadeiras, sem repararem que o meu carro se aproxima. O meu carro, que absorve as minhas propriedades. O meu volante, trémulo e agonizante, nas mãos de um homem que, como disse, é feito do material de que são feitos os psicopatas. Um homem que era alguém que insistia em respeitar o espaço dos outros, a respeitar as distâncias de segurança.
Mas também eu não estou imune a absorver as propriedades dos outros. Não é que não continue a ser invisível, mas hoje empreendo um esforço maior no sentido de não ceder tanto o meu espaço, ou seja, faço por ser menos translúcido. E para tal decidi recorrer a medidas drásticas. Ou seja, quando um vulto se aproxima, faço as contas e desvio-me o que acho ser a quota parte do meu lado, a minha “fair share”. E o outro depois, que se aguente à bronca. Terá duas opções, ou ceder também a sua quota parte de espaço, corrigindo a trajectória do percurso nessa devida proporção, ou então que assuma as consequências (leia-se, de levar comigo em cima) pois mais não farei do que a minha obrigação. Na verdade, esta minha nova regra de circulação pelos centros comerciais tem resultado numa experiência sociológica e pessoal interessante. Nunca na minha vida tinha dado tantos encontrões e “ombradas” a cidadãos anónimos. “Ai não me vêem? Ai não se desviam desta óbvia rota de colisão? Ora tomem lá” e lá vai mais um embate de ombro contra ombro. Confesso que começo até a retirar algum prazer nestes duelos. Começo até, diga-se em nome de toda a clareza, a ceder cada vez menos da minha própria parte aos outros transeuntes. E dou comigo, por vezes, a fazer até pontaria. Enfim, tudo por uma sociedade mais correcta e em nome do comportamento cívico dos cidadãos que andam aí pelos centros.
E nesta minha missão não dou folga a nenhum tipo de personalidade, todas estão debaixo da mira do meu ombro justiceiro. Excepção feita, claro, às que considero mais vulneráveis, das quais me compadeço porque estão de mal com a vida, com má cara mas com tal fragilidade no olhar que nem insisto em lhes apertar o cerco. É o caso, por exemplo, daquelas velhotas recurvadas com mais de oitenta anos. E também o daqueles pobres diabos, rapazolas de aspecto troglodita e biceps disformes, tipicamente de quem passa noite e dia a malhar no ginásio.
Acho que tens toda a razão....Realmente porque é que têm de ser sempre os mesmos a desviarem-se...????Agora estou um pouco frágil para iniciar a aventura de "estátua", a não ser que tal como usar umas botas de biqueira de aço, compre um casaco com ombros de aço, e aí vamos ver....se de tranaparente passo a ter alguma corzinha... A anónima do costume ...e agora...lá tem de ser.... vju4tol...não não sou um robot
ResponderEliminarPerdão ! Transparente...e mais uma vez....4dkoufc....
ResponderEliminarNo dia em que a estratégia resultar num choque frontal pode ser que chegues à conclusão que tinhas outro 'cientista' pela frente. A testar a mesma hipótese que tu. :)
ResponderEliminarConcordo a 100% com o ensaio sobre o "exagero" de educação ou de civismo.
ResponderEliminarMas já há muito tempo que noto que há uma categoria de pessoas que são os mesmos, isto é, sobra sempre para eles, sobra sempre para os mesmos....
Para mim há situações mais dramáticas do que os encontrões ou desvios, situações que roçam a humilhação....É o caso de abrir a porta, tranquilamente, para passar e alguém aproveitar para passar primeiro, sem qualquer comentário, como se passar à frente fosse um direito que lhe assistisse...
Como se "os mesmos" fossem o porteiro de serviço!!! (Sem desprestigio para os porteiros, óbviamente...)
Sem falar de casos gravíssimos, humilhantes, verdadeiros rastilhos de violência urbana, como a ocupação abusiva do lugar de estacionamento, o único naquela zona, quando estamos a fazer a manobra para estacionar...
A solução será, talvez, tirar um curso de "Full contact", muitas horas de musculação e passar para o grupo de "os outros"!!!
É uma boa ideia, essa das ombreiras de aço. Só espero que, quando colidir com o outro cientista, ele não se tenha lembrado do mesmo.
ResponderEliminarQuanto às situações e exemplos de pouco civismo nos espaços públicos, infelizmente podemos lembrar-nos de alguns, como esse da ocupação abusiva do lugar de estacionamento. E a também abusiva ocpupação das mesas nos espaços comuns da área dos restaurantes. Imensas mesas ocupadas por pessoas que estão apenas a "guardar o lugar", enquanto nós (os "mesmos") damos voltas e voltas de tabuleiro na mão, com a comida que vai esfriando, à procura de um lugar vazio.
Mas enfim, dito tudo isto, nem sequer sou apreciador de centros comerciais e evito-os sempre que posso, sobretudo aos fins-de-semana. O que é pena, porque recolho menos dados para a minha experiência...