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sábado, 5 de maio de 2012

A dívida


Há pessoas a quem não agradecemos devidamente. Mas como é que se retribui, com palavras ou gestos, a alguém que em determinada altura foi o rochedo ao qual nos agarrámos quando o chão parecia fugir-nos por debaixo dos pés?
Não surgem na vida muitas pessoas assim, com aquele carácter sólido e o tom certo, assertivo, que nos ajuda a trazer para cima ou, simplesmente, que não nos deixa afundar no pântano. É preciso ter sorte para, na circunstância certa da vida, essa pessoa estar ao nosso alcance. Mais sorte ainda é necessária para que essa pessoa sequer exista. Nem toda a gente tem ou teve uma pessoa assim. Uma pessoa que pode ser um familiar, ou um amigo.
A mim aconteceu-me uma pessoa assim, com quem me sinto eternamente em dívida. Sei que não faz parte do perfil de alguém como a pessoa que aqui descrevo nos pedir um dia algo em troca.
E é isso que também nos faz sentir ainda mais em dívida.
Talvez a melhor forma de pagar a dívida seja aprendermos a ser melhores pessoas. Saber colocar os pés mais firmemente no chão e termos mais coragem a trilhar o nosso próprio caminho, sentindo que estamos entregues ao mundo, disponíveis para o mundo e menos centrados em nós próprios. Empreender, talvez, um “paid it forward” mesmo quando não nos sentimos preparados para isso. E por preparados refiro-me a realizados com os nossos próprios projectos. Eternos, inalcançáveis projectos. Deixá-los de lado, em “stand-by”, eis como pagar a dívida. Ou talvez emprestá-los aos outros, por um tempo indeterminado, talvez para sempre. Eis como pagar a dívida.
E sermos felizes assim. Felizes com as pequenas coisas, talvez sejam essas as grandes coisas. As coisas que interessam ao prepararmo-nos para a morte. Tudo depende, sempre, da perspectiva. Não há mal nenhum em prepararmo-nos para a morte na etapa os trintas. Não é sequer prematuro, é realista. Quanto mais cedo nos preparamos para a morte mais tempo de vida ganhamos, em todo o intervalo que perfaz o momento em que nos sentimos prontos para a morte e o momento em que ela se materializa.
E prepararmo-nos para a morte é não mais do que fazer as pazes com os outros, e ir ainda mais além e fazermos as pazes connosco. É visitar o quarto da nossa infância como quem chega ao fim da viagem. Como diria T.S. Elliot, “voltar ao ponto de partida e, pela primeira vez, conhecer esse lugar”. É revisitar os nossos amigos de infância, aprender que foi com eles que nós estivemos mais perto do eu mais verdadeiro. O eu que evitámos tantas vezes olhar de frente sempre que nos olhávamos ao espelho.
Revisitar os amigos de infância, trilhando o feno em câmara lenta. Revisitar os amigos de infância, como Ulisses a tornar a Ítaca.
É isso em que se traduz encarar a morte, sentir qual o nosso lugar, é por fim ouvir mais do que falar, é por fim voltar a encarar o espelho. É encontrarmos no abraço daquele amigo o nosso lugar. Sentir que o mundo pode acabar. Que não é preciso mais nada dizer, mais nada fazer. Que estamos bem. É isso o preparar para a morte. É o extenso caminho derivar para a casa velha, voltar a pisar o caminho invadido de heras, em direcção ao nosso pai, à nossa mãe.
É isso o preparar para a morte, tirar dos ombros o peso dos anos que tentámos ir mais além. Viver neste tempo que dista o dia em aceitámos o pacto de que somos finitos, até à consumação desse pacto, sem que nada o tempo nos leve que não aquilo de que já não precisamos. Vivermos para as pequenas coisas, e aceitarmos que vivemos para as pequenas coisas, e assim fazermo-nos ao caminho das pequenas coisas, trazendo todo o percurso de uma vida na palma de uma mão.
Eis como pagar a dívida. Obrigado João.

3 comentários:

  1. Bem este é um teste ....vou colocar um LIKE pela forma como escreves, que me faz sempre procurar novas publicações. Esta em especial, foi motivo de troca de ideias com o Senhor teu pai.....daí ele te ter tentado enviar um comentário que foi parar a ele próprio, como já sabes.
    Bem mas isto é um teste....acabo já......este anónimo chama-se ANA

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  2. Li a tua crónica sobre A Dívida e vários sentimentos me ocorreram à medida que lia o texto.
    Uma parte é compreensível, a da dívida pròpriamente dita...
    A Dívida perante a ajuda de outrem, familiar ou não, que, como por magia, estava no sítio certo, à hora certa, com uma força e determinação só possíveis na presença de uma certeza sem margem para dúvidas, sem dialéticas ou genes de indecisão.
    Também compreendo o pay it forward, no fundo uma forma para pagar dívidas - que não tenham a ver com assuntos da máfia- dizia eu, uma forma de retribuição tão velha quanto o mundo.... Só espero que o nosso governo tenha isso em consideração no pagamento das pensões !!!!
    Agora a tua abordagem sobre a morte é que me parece prematura. Percebo o que queres dizer, mas penso que essas considerações são mais próprias para quem a contagem decrescente é coisa pouca...

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