Foi noite de "Fúria do Herói" no canal
Hollywood, naquela altura em que devia estar a fazer coisas bem mais
interessantes, como por exemplo dormir, mas que é também uma altura em que me
habituei, na fase final da escrita da tese, a descomprimir da ansiedade do dia
com uma certa ligação hipnótica a um mundo ficcional, que tem aquela função de
história de embalar. Tal como o fazia em adolescente com Lucky Lukes,
Asterixes, Blueberrys, Vagabundos dos Limbos, e muitas outras histórias em
banda desenhada que conheci em grande parte por influência do meu pai, que era
ele próprio um grande aficionado pelas 7ª e 9ª artes. Uma dúvida, que arte está
entre elas? O que é a 8ª arte? Basta ver no google, mas voltemos ao Rambo.
O Rambo já tinha passado dias antes a esta mesma hora, neste mesmo canal e, como esperado, cumpriu
a rápida missão de estalar os dedos para me pôr a dormir. Mas não desta última
vez, desta consegui seguir o filme até à cena final que, reconheça-se, é espectacular.
E é ela que faz a diferença. Até lá o filme encaixa-se numa obra de acção de
série B, na sua estética “eighties”. Mas depois assistimos àquele clímax final,
com lágrimas a escorrer pelo rosto de Rambo, um homem desintegrado e posto à
margem de um país que o usou no Vietname quando tanto lhe deu jeito. Um homem
que era o estereótipo do herói da nossa adolescência:
-Botas da tropa.
-Calças de camuflado.
-Tronco nu ou camisa justa de alças a realçar o
corpo de culturista, com uns bíceps sempre rijos a suportar o peso de uma vigorosa
metralhadora - por vezes até uma bazuca: é interessante o fascínio que nós tínhamos
naquela altura por armas de fogo, principalmente as que causassem o maior
chavascal possível em plena avenida de uma grande cidade, deixando atrás de si
um rasto de destruição, incêndios e estradas bloqueadas a causar um forte congestionamento
no trânsito. E eu que hoje por vezes me queixo na segunda circular, que direito
tenho?
Enfim, o Rambo significa, sobretudo, os meus
amigos de infância. Os que cresceram comigo durante a adolescência e que partilham
hoje comigo estas referências. Havia o Rambo, e havia também quem preferisse o
Comando. E Consumíamo-los não só em filmes, mas também em cadernetas de cromos,
calendários e, sobretudo, nas suas versões interactivas em jogos ZX Spectrum.
Mas apesar deste estereótipo de herói, que era um
reflexo de estarmos na altura em plena guerra fria, com a hipertrofia muscular a
rasgar pelas comissuras das camisas, não havia muito na altura a mania nos ginásios.
Hoje os ginásios estão na moda, e estão cheios de
malta que passa lá a vida a dar no duro, mas nota-se bem que já não estamos na
guerra fria.
Estes culturistas de hoje já não usam botas da
tropa. Estes são Rambos que usam ténis sofisticados, de tons fluorescentes e, de
acordo com a moda de hoje, na zona de contacto entre o pé e o sapato, envergam
umas meias que de tão curtas nem chegam ao tornozelo. Ora, não me parece que
isto seja por causa dos russos, nem que tenha a ver com a guerra contra o
terror. Hoje o inimigo comum, que faz com que tanto jovem passe dias inteiros
no ginásio, é mesmo o jugo de ser "in" e de ser "fit" na óptica frívola da sociedade de consumo e da mão invisível que pelos vistos não evita o flagelo do desemprego. Como é que um desempregado paga a mensalidade
de um ginásio? Não sei. Talvez tenha “algum” posto de lado, ou um pé-de-meia ou
conte com a ajuda da família, mas a verdade é que a imagem de hoje do homem atlético,
de porte viril e musculado não é a imagem do homem que
veio da guerra e não se sinta reintegrado no país que serviu, mas a do homem com muito
tempo nas mãos, pouco trabalho, e um país que não sabe como servir.
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