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sexta-feira, 27 de abril de 2012

Anteontem lá passou o Rambo


Foi noite de "Fúria do Herói" no canal Hollywood, naquela altura em que devia estar a fazer coisas bem mais interessantes, como por exemplo dormir, mas que é também uma altura em que me habituei, na fase final da escrita da tese, a descomprimir da ansiedade do dia com uma certa ligação hipnótica a um mundo ficcional, que tem aquela função de história de embalar. Tal como o fazia em adolescente com Lucky Lukes, Asterixes, Blueberrys, Vagabundos dos Limbos, e muitas outras histórias em banda desenhada que conheci em grande parte por influência do meu pai, que era ele próprio um grande aficionado pelas 7ª e 9ª artes. Uma dúvida, que arte está entre elas? O que é a 8ª arte? Basta ver no google, mas voltemos ao Rambo. 
O Rambo já tinha passado dias antes a esta mesma hora, neste mesmo canal e, como esperado, cumpriu a rápida missão de estalar os dedos para me pôr a dormir. Mas não desta última vez, desta consegui seguir o filme até à cena final que, reconheça-se, é espectacular. E é ela que faz a diferença. Até lá o filme encaixa-se numa obra de acção de série B, na sua estética “eighties”. Mas depois assistimos àquele clímax final, com lágrimas a escorrer pelo rosto de Rambo, um homem desintegrado e posto à margem de um país que o usou no Vietname quando tanto lhe deu jeito. Um homem que era o estereótipo do herói da nossa adolescência:
-Botas da tropa.
-Calças de camuflado.
-Tronco nu ou camisa justa de alças a realçar o corpo de culturista, com uns bíceps sempre rijos a suportar o peso de uma vigorosa metralhadora - por vezes até uma bazuca: é interessante o fascínio que nós tínhamos naquela altura por armas de fogo, principalmente as que causassem o maior chavascal possível em plena avenida de uma grande cidade, deixando atrás de si um rasto de destruição, incêndios e estradas bloqueadas a causar um forte congestionamento no trânsito. E eu que hoje por vezes me queixo na segunda circular, que direito tenho?
Enfim, o Rambo significa, sobretudo, os meus amigos de infância. Os que cresceram comigo durante a adolescência e que partilham hoje comigo estas referências. Havia o Rambo, e havia também quem preferisse o Comando. E Consumíamo-los não só em filmes, mas também em cadernetas de cromos, calendários e, sobretudo, nas suas versões interactivas em jogos ZX Spectrum.
Mas apesar deste estereótipo de herói, que era um reflexo de estarmos na altura em plena guerra fria, com a hipertrofia muscular a rasgar pelas comissuras das camisas, não havia muito na altura a mania nos ginásios.
Hoje os ginásios estão na moda, e estão cheios de malta que passa lá a vida a dar no duro, mas nota-se bem que já não estamos na guerra fria.
Estes culturistas de hoje já não usam botas da tropa. Estes são Rambos que usam ténis sofisticados, de tons fluorescentes e, de acordo com a moda de hoje, na zona de contacto entre o pé e o sapato, envergam umas meias que de tão curtas nem chegam ao tornozelo. Ora, não me parece que isto seja por causa dos russos, nem que tenha a ver com a guerra contra o terror. Hoje o inimigo comum, que faz com que tanto jovem passe dias inteiros no ginásio, é mesmo o jugo de ser "in" e de ser "fit" na óptica frívola da sociedade de consumo e da mão invisível que pelos vistos não evita o flagelo do desemprego. Como é que um desempregado paga a mensalidade de um ginásio? Não sei. Talvez tenha “algum” posto de lado, ou um pé-de-meia ou conte com a ajuda da família, mas a verdade é que a imagem de hoje do homem atlético, de porte viril e musculado não é a imagem do homem que veio da guerra e não se sinta reintegrado no país que serviu, mas a do homem com muito tempo nas mãos, pouco trabalho, e um país que não sabe como servir.

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