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quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O indomável rei do asfalto

Até aqui evitei escrever sobre o Gustavo. O Gustavo Moutta. Sem gralha, com dois tês.

E fi-lo por motivos óbvios. Não porque tenha medo que ele me bata, pois já lá vão esses tempos. Aliás, apesar da sua figura alta e encorpada, o Gustavo não era por natureza agressivo, só mesmo se o tirassem do sério. E era muito difícil tirá-lo do sério.

Era difícil, mas eu consegui-o. Vou tentar explicar.

Na fase áurea dos “Jovens heróis de Shaolin” nós andávamos todos maravilhados com as artes marciais. Aquilo era um espanto. Tinha tanto de acção e luta, como de romântico. Eu lembro-me que andava perdidamente apaixonado por uma chinesa daquela série, mas o tempo, e a Candy Candy, trataram de ma fazer esquecer. De tal forma que já nem lhe lembro o nome. E o facto de ela ter um nome esquisito não serve de desculpa. Até porque de outros nomes esquisitos não me esqueci. Não só da Candy Candy mas também da mocinha indiana do “Era uma vez no espaço”, cujo nome era “Psi”. Claro que a Psi tinha a seu favor o facto de ter sido a primeira rapariga que vi em soutien.

Isto é rigorosamente verdade.

Mas voltando aos “Jovens heróis de Shaolin”, lembro-me que eu e o Gustavo passámos umas Férias Grandes juntos, em que estivemos o tempo todo a simular grandes cenas de luta. É óbvio que, sendo o Gustavo o maior, e apesar de se tratar de uma simulação, ele acabava sempre por cima. E que não saiam daqui já interpretações perversas. Bem nos bastou aquele dia em que lutávamos no relvado das piscinas de Vila Viçosa e nos emaranhámos a ver quem conseguia derrubar o outro, até sermos interrompidos por um bando de jovens que gritavam do outro lado da piscina nomes que aqui não reproduzo, mas que punham em causa a nossa orientação sexual.

Envergonhados, lá enfiámos a viola no saco e fomos fazer a nossa vida para outros lados. E fazer a nossa vida, entenda-se bem, era ir praticar artes marciais, desta feita para o quintal da minha casa.

Mas nesse dia, no meu quintal, a coisa começou a pegar mais a sério. E eu, que estava farto de apanhar, encetei um chorrilho de pontapés na zona mais frágil do Gustavo: as canelas. Todos sabíamos que era o seu ponto fraco, pois em tantos anos a praticar desporto, Gustavo nunca foi visto em calções. Nunca, mas nunca mesmo, alguém lhe vira as pernas.

De modo que foi essa a minha estratégia. Mas é claro, eu sabia que ia haver vingança. E foi até com um certo desportivismo que deixei o Gustavo aproximar-se vermelho de fúria para me dar o que, imaginei eu, seria bom para a minha tosse.

Só que havia um pormenor. Relativamente à minha antiga casa de Elvas, quando se fala em quintal da frente, é incontornável falar-se de um certo vulto canino, que de resto amedrontava toda Rua Domingos Lavadinho e zonas limítrofes. Mesmo quem vinha de Badajoz para almoçar no El Cristo, já tinha indicações de antemão para contornar aquela rua. A rua onde o pobre cabeleireiro Carlos Luciano dificilmente conseguia angariar clientes, por causa do meu cão. Carlos Luciano tinha aliás o seu espaço na cave do mesmo edifício onde era a minha casa, de forma que as janelas do cabeleireiro davam, precisamente, para o meu quintal .

Por isso o próprio Carlos Luciano devia estar a assistir àquela cena durante o seu ofício, e ao ver o Gustavo a agarrar-me para me desancar, terá dito baixinho, entre dentes para não espantar o cliente, “não, não, não”.

Carlos Luciano sabia. E tal como ele antevira, Tany surgiu disparado da casota, lançando-se ao Gustavo com um esgar de quem o ia comer. A partir daí foi a habitual cena de tragicomédia. O meu amigo e parceiro de artes marciais, passando de vermelho a lívido, corria às voltas no quintal a tentar fugir do cão, enquanto gritava “Guilherme, faz qualquer coisa! Guilherme!”.

“Obviamente este não estava cá quando o João foi atacado”, pensei eu cá com os meus botões. “Senão saberia que não sou a pessoa mais indicada para resolver estes assuntos directamente. Sou, no entanto, proactivo. Tomo as minhas diligências, como tocar à campainha da minha casa para alguém vir acorrer. Mas eu a interferir nos ataques do meu cão? Eu? Não. E não, porque não se deve interferir com a natureza. Quando vemos um documentário da National Geographic não vemos lá ninguém a evitar que o leão estraçalhe a gazela. Faz parte.”

E no entanto, desta vez, tentei colocar-me entre o Gustavo e o Tany. Ou talvez, analisando a situação com mais rigor, fosse mais honesto dizer que foi o Gustavo que tentou colocar o meu corpo entre ele e o meu cão. Mas isso já é o campo do detalhe.

O que interessa é que o danado do animal estava tão louco por afiambra-lo que ao Gustavo não restou outra hipótese senão fazer um sprint e saltar o portão na passada, estilo 100 metros barreiras. Ora, é um facto que o Gustavo tinha umas longas pernas, mas não era fácil saltar o meu portão assim, só de um impulso.

De forma que tenho ainda viva, na minha memória, a imagem do Gustavo a colidir com o topo do gradeamento e cair desamparadamente do outro lado. Estava salvo. Salvo sim, mas um pouco humilhado. E eu, que subi as escadas e voltei para casa, sabia que aquilo não ia ficar assim. A forma do Gustavo me mostrar isso mesmo foi muito eloquente. Simplesmente, deixou-se ali ficar prostrado no chão com o olhar fixo na varanda frontal da minha casa. Horas a fio. Entretanto chegou o Luís Laranjeira e tentou demovê-lo, mas nada. Eu ia discretamente espreitar à varanda e ele lá estava. Imóvel e sobranceiro como uma esfinge, com um olhar tão afiado que era como se dissesse “Fica aí, no teu castelo…”. E lembro-me de ter pensado: “Meu Deus, espero que a minha mãe já tenha feito as compras no Galego, vou precisar de mantimentos”.

Felizmente não foi preciso. Aos poucos, Gustavo afrouxou o cerco. E no dia seguinte, na escola, já tudo estava sanado.

Mas não foi por causa deste episódio que me refreei a escrever aqui sobre o Gustavo. Evitei sim porque o Gustavo é uma dessas personagens que nos lembra sempre o conto do Rei Édipo.

Já em adolescente, Gustavo carregava com ele uma conflitualidade, quase poética, de quem não queria trilhar o percurso que para ele tinha sido traçado. Com uma carapaça indomável e um espírito inquieto, Gustavo preferia percorrer o seu próprio caminho, testando os limites de velocidade da sua mota. Ele era daquelas pessoas que bem podia fundir-se com a sua mota. Uma espécie de centauro motorizado, mas com o cabelo do Vanilla Ice. Gustavo era também o rei das pistas de dança. Quando o Fernando me ensinava a dançar Enigma, nós mais não fazíamos do que tentar imitá-lo.

E sempre que via o Gustavo partir na sua mota, eu sabia, tinha a certeza, que nunca o veria, um dia mais tarde, atrás do balcão da Farmácia Moutta. Mas, uma vez mais, e como vai sendo hábito, enganei-me. Estava proclamado. O destino estava traçado.

No final da sua jornada, Rei Édipo vazou os olhos.

E o Gustavo? Será que já mostra as pernas?

3 comentários:

  1. LLooLL
    Se eu te dissesse a quem já mostrei...
    Claro que sim,basta jogares comigo ténis por exemplo, claro que não jogo de calções ajustados como alguns gayolas que andam por aí, mas pelo menos do joelho para baixo...:-)
    Grande abraço!
    Ps:Isto é tudo verídico!!!!!!!!(como sempre)

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  2. Que texto delicioso e tão bem escrito!

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