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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

As meninas do 9ºC

Têm-me acusado, a meu ver injustamente, de só abordar personagens masculinos nestas minhas humildes crónicas, que porventura são as mais humildes crónicas de todas as humildes crónicas da blogosfera - parafraseando os chineses gerentes das lavandarias do oeste, nos célebres álbuns do Lucky Luke. E têm-me acusado apontando veementemente o dedo. E eu que detesto que me apontem o dedo.

Ao menos que fosse o gelado “o dedo”.

A verdade é que não é fácil escrever sobre as raparigas, pelo menos sobre as raparigas da nossa turma naquele tempo. Isto porque os rapazes davam-se pouco com as raparigas. Havia como que uma tensão latente nos relacionamentos entre gaiatitos de sexos diferentes. Com a mesma idade elas eram geralmente mais maduras do que nós, e havia aquele sempre frustrante “gostar de”.

Muitos anos, direi mesmo muitas décadas antes de ter sido inventado o facebook, já havia o dispositivo onde podíamos clicar “gosto”. Era mesmo uma espécie de “statement” que sentíamos compulsivamente a obrigação de fazer. Chegávamos lá – e por lá, entenda-se, uma rapariga - e clicávamos “gosto”.

É que em matérias de “gostar” começa-se sempre pelo que temos no nosso próprio ninho. É mais ou menos como os filhotes dos leões que treinam com a mãe a caçar. Nós aprendíamos com as raparigas da turma a dar os primeiros passos em torno desse grande enigma da vida, que é o “gostar de” alguém.

Eu era um desses mestres do “gostar”. Poucas raparigas há a quem eu não tivesse feito “gosto disto”. Acho mesmo que fui eu quem inventou o “gosto disto” no que diz respeito a raparigas. Não só as da nossa turma, mas também de outras esferas, como por exemplo a princesa Leia do “StarWars”, ou nem que fosse a tal Psi do “Era uma vez no espaço”. Eu tinha é que estar sempre a fazer “gosto” a alguém.

Foi assim sem espanto que, desde a escola primária até ao ciclo, eu perdi a conta de quantas raparigas gostei. Mas com alguma boa vontade, e um extenuante exercício de memória, poderei referir alguns casos.

E um deles é, sem grande surpresa, o caso da Patrícia. É que em matérias de “gostar disto”, gostar da Patrícia era a coisa mais natural que havia. Arriscaria dizer que quase todos passaram pela fase de gostar da Patrícia. Lembro-me que na altura escrevi até uma letra para uma canção que inventei na altura, que se chamava, precisamente, “Patrícia”. Compus a música num orgãozito encarnado que tinha recebido no Natal e só foi pena não ter pedido auxílio ao Nuno Carmona para compor uma ode à minha musa daqueles tempos. Assim a melodia ficou um pouco simples, restrita ao uso quase aleatório de três teclas do órgão, não fazendo de modo nenhum jus àquela a quem tinha tão dedicadamente clicado “gosto disto”. Um fiasco. E ainda por cima, tanto sofremos nós com os maneirismos de Camões na escola, que copiei o seu ideal romântico de beleza, transformando a Patrícia da minha canção numa loira de olhos azuis, coisa que contrasta de sobremaneira com a Patrícia que conhecemos.

Naturalmente, a Patrícia nunca me deu bola. E perante este retumbante fracasso, dei comigo a pensar como um jogador de futebol, tecendo considerações como “faltou-me uma pontinha de sorte” e “há que levantar a cabeça”. E foi isso mesmo que fiz. Levantei a cabeça, mas fiz mais do que isso. Resolvi também mudar de estratégia.

Foi assim que, ao continuar a minha senda, quando fiz uma incursão para “gostar” da Rita, a minha abordagem deixara de ser aquela romântica do início. Diria que foi uma investida bem mais objectiva, revelando prematuramente um pragmatismo económico no carácter deste vosso servidor de crónicas. E quando falo de economia não me refiro a economia de esforço ou a uma rigorosa avaliação apriorística de custo-benefício relativamente ao mais recente alvo dos meus afectos. Quando falo de economia falo dos 25 escudos que, à socapa, enfiei na mochila da Rita durante um tempo de recreio. E, relativamente a este aspecto, por mais que faça esforço de memória não consigo lembrar-me qual terá sido o meu verdadeiro objectivo. Sei que recorri aos serviços do Nuno Figueira, que era de todos os amigos o melhor pombo-correio, ou seja, ele era o melhor vector que eu conhecia para espalhar notícias, numa altura anterior à existência do correio azul. E contei assim ao Figueira o meu feito, para que, durante aquele mesmo recreio, a Rita viesse a ter conhecimento da minha oferta. Que era humilde, mas sincera. E viesse ou não a sortir efeito, tenho hoje pelo menos um certo orgulho no adolescente que eu era. Já naquela altura eu sabia como tratar uma senhora.

Mas as más notícias chegam geralmente cedo. E ainda durante o tempo útil daquele intervalo a Rita chegou-se a mim com a moeda de 25 escudos na mão.

Em suma, ela não a queria. E ao devolver-me a moeda, o que a Rita me mostrou, da pior das maneiras possíveis, foi que já naquela altura ela não ia seguir por esses caminhos.

A Rita estava determinada em ser, um dia, uma boa profissional, mas não uma profissional desse tipo. E eu, mais uma vez desapontado, desgraçado e vítima de mim próprio, pensei “Ai não queres? Pois se estes 25 escudos não são para ti, não os gastarei em mais nada”.

Ideia que entretanto amadureceu e acabei a comprar um cachorro. Peço apenas a atenção para que se saiba que aquilo não era um cachorro qualquer. Eram daqueles maravilhosos cachorros feitos na cantina do ciclo. E foi assim que lá compensei a minha frustração.

Mas o mundo está felizmente cheio de mulheres. E lembro-me de na altura ter também passado pela fase de gostar da Marta. Gostar da Marta era também óbvio pois ela era um mulherão já desde tenra idade. Mas em relação à Marta tínhamos que ter mais cuidado. Porque se a arreliássemos muito podia ser que levássemos um tabefe daqueles que nos deixava sem saber de que terra éramos.

A Marta era, no entanto, uma pessoa sensível e sofria também com os arrufos entre rapazes e raparigas. Arrufos estes que resultavam dos sentimentos confusos que nos uniam, em parte devido às tais discrepâncias de maturidade. Era de facto difícil perceber como chegar a uma rapariga. A mim, então, não me tocava nada, nem com romantismo, nem mesmo a pagar.

Mas voltando aos confrontos entre rapazes e raparigas, a Marta liderava invariavelmente a facção feminina e muitas vezes as tensas discussões que se geravam tinham como palco a sala de aulas da disciplina de Ciências da Natureza. Aquela sala era um verdadeiro consultório sentimental porque a professora São Ruas, para além de nos leccionar ciências, moderava também os nossos conflitos. É o que dá o “gostar disto”. Uma das vantagens de não ter accionado esse dispositivo nos meus colegas rapazes é que, anos mais tarde, posso escrever sobre eles. Acabámos a ter uma relação mais franca e aberta, enquanto com as raparigas o ter que gostar delas retirou alguma espontaneidade aos relacionamentos.

Houve, no entanto, algumas excepções. Por exemplo, não me recordo de algum dia ter gostado da Cláudia Solas, mas há uma razão para isso. É que eu, à Cláudia Solas, fiquei-lhe com “um pó” desde que ela me venceu no concurso de melhor fantasia de carnaval, numa aula do professor Xarepe. Lembro-me que eu ia magnificamente mascarado de soldado da cavalaria do faroeste, todo aprumadinho num fato azul com um lenço amarelo, cinto com espada a preceito e chapéu à cowboy. Por outro lado, lembro-me que a Cláudia tinha trazido um vestido de princesa das arábias e foi a minha maior concorrente. Agora que olho para trás, naquele concurso da nossa 4º Classe estava já inventado o conceito dos “Ídolos”, pois fomos seleccionando, eliminação atrás de eliminação, os dois finalistas. E eram os votos do público (da turma neste caso) que decidiam o vencedor.

Como é que eu pude ter a ilusão de que poderia ser eu? Enfim, mais tarde lá fiz as pazes com a Cláudia Solas, até porque ela era a minha versão feminina, ou seja, era de todas a rapariga mais tímida da turma.

Finalmente, não faz sentido falar das raparigas da minha infância e adolescência sem referir aquela que acabou por ser a minha melhor amiga durante os tempos do ensino secundário e mesmo universitário. Refiro-me, obviamente, à Jú. Porque falar das raparigas da turma sem incluir a Jú é como intitular os célebres álbuns de Goscinny e Uderzo de “As aventuras de Abraracourcix, o gaulês”.

Na Jú também nunca cliquei “gosto disto” embora muitas vezes pensassem que éramos namorados, pois por vezes funcionávamos quase como um casal. Acho que, ainda hoje, haja quem pense que chegámos a namorar. Penso que foi esse o segredo para a ter tido como amiga e termos funcionado sempre tão bem. E vejam que se atentarmos aos pormenores que definiam o carácter de um e de outro, tínhamos mesmo tudo para não resultar. Éramos, em muitos aspectos, o contrário um do outro. Se fossemos ao “Prós e Contras” da Fátima Campos Ferreira estaríamos quase sempre em lados opostos da barricada.

E no entanto, fomos grandes confidentes. Aliás, pensando bem, acho que a Jú foi, contrariamente à lista de moças que costumo enumerar, o mais próximo que tive de uma namorada durante a minha adolescência.

E ainda querem que a gente entenda isto das relações entre rapazes e raparigas.

1 comentário:

  1. Que texto brilhante! Não sei se é por partilhar estas memórias, mas esta é uma das crónicas mais bem escritas que me lembro de ler. Sublime!

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