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terça-feira, 12 de outubro de 2010

Ruas dos nossos destinos

Ok, talvez o título de “burro marrão” tenha sido um exercício demasiado exaustivo de auto-comiseração. Mas tinha as minhas fragilidades na escola, nomeadamente a participação nas aulas. Litros de adrenalina invadiam-me as veias sempre que era chamado a participar. Era uma ansiedade tremenda. Acho que grande parte dos meus traumas funda-se precisamente aí, no pesadelo que era uma solicitação para ir ao quadro.

Um dos episódios que ainda hoje recordo vivamente - ou diria antes, que ainda me faz acordar durante a noite com suores frios - passou-se numa aula de Ciências da Natureza, no 2ªano do ciclo preparatório. Certo dia a então professora Conceição Ruas deu uma aula sobre “Cancro” e resolveu começá-la de uma forma diferente. Sabendo-me filho de médicos, incitou-me a ir ao quadro explicar à turma o que é que eu sabia sobre o tema. A partir da minha introdução abrir-se-ia o mote para discussão geral na sala. Escusado será dizer que fiquei em pânico, aturdido de horror, petrificado, mas lá me desloquei, devagar e relutantemente ao maldito quadro. Tinha uma sala cheia de olhos postos em mim, e um grande vazio no meu cérebro. Até que me lembrei da última conversa que tivera com a minha avó sobre esse tema nas últimas férias. Basicamente, peguei nas sábias palavras da minha avó e fi-las minhas. “O cancro é como umas raízes que se desenvolvem num determinado órgão…”, comecei eu, “e depois essas raízes espalham-se para outras partes do corpo”, continuei eu, enleando-me cada vez mais no tropel de idiotices que me vinham à memória. Buscar inspiração na – não desfazendo - sabedoria da minha avó não seria com certeza o que a professora tinha em mente, como deu para constatar quando lhe olhei pelo canto do olho.

A professora já estava verde. E não, não era por ser a professora de Ciências da Natureza.

“Obrigada Guilherme, pode-se sentar” disse-me ela por fim. E depois, virando-se para a turma, a Prof. São Ruas solenemente concluiu “Não é nada disto”.

Se alguma hipótese havia de eu ter seguido Medicina, desmoronou-se aí, nesse momento, como um castelo de cartas. Mas por pouco não fui caso único no currículo desta professora. Havia também um colega, o Nuno Carmona, que sonhava ser músico. Um dia, ao recebermos os testes de ciências, Carmona sentiu o futuro a aniquilar-se diante dos seus olhos ao receber um “Satisfaz Bastante”. Foi com estupefacção que a turma viu, pela primeira vez, Carmona lavado em lágrimas e percebemos logo porquê. Uma nota “Excelente” traduzir-se-ia numa grande recompensa: a oferta do seu tão almejado violino.

Esta história seria arrebatadoramente romântica se o nosso amigo tivesse ficado de tal forma marcado pela frustração que tivesse lutado a vida toda por ter um violino e fosse hoje um conceituado violinista. Mas nunca mais lhe ouvimos falar do violino.

No outro dia almocei com o Nuno e perguntei-lhe o que tinha sucedido desde esse dia ao que ele me respondeu “Ah isso… acabei por receber o violino na mesma. Ainda ali está a um canto”. E passámos o resto do almoço a falar dos nossos actuais interesses, nomeadamente, tocar órgãos de tubos.

4 comentários:

  1. OK. Tímido já é um adjectivo que se adequa.

    Nunca mais ouviram falar do violino porque também nunca consegui que ele soasse de forma agradável. Para minha consolação já ouvi muito violinista a tocar em orquestras (amadoras, é certo) a tocar pouco melhor que eu. Fiquei a respeitar e muito os bons violinistas. Não são assim tão fáceis de encontrar.

    Boas memórias, "Guilhas"

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  2. Também tem a ver com diferentes fases da vida. Agora estás mais virado para o Barroco e, tanto quanto sei, o violino ou a guitarra eléctrica não são os melhores instrumentos para interpretar Bach ;)

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  3. Ah não?!

    Ora toma!:

    http://www.youtube.com/watch?v=Ypx1gCNVIZA
    http://www.youtube.com/watch?v=9SmIxb3DkUQ
    http://www.youtube.com/watch?v=w_pkJc7dKvA

    http://www.youtube.com/watch?v=aNfox7ORW1Q
    http://www.youtube.com/watch?v=UFdbQtu2A4Q

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  4. Fabuloso ouvir o "air on the G string" em guitarra eléctrica! Obrigado pelos links.

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