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domingo, 17 de outubro de 2010

O encantador de cães

Do grupo de colegas da altura, o único que enveredou por algum tipo de Medicina, mais precisamente Medicina Veterinária, foi o João Carlos. Vendo bem as coisas, o João era o meu colega de carteira, portanto posso afirmar com algum grau de segurança que, tecnicamente, fui a seguir ao João quem mais esteve próximo de enveredar por alguma espécie de Medicina. Mas o João tinha lá aquilo na cabeça, gostava de animais, era o único que não tinha medo da besta que era o cão que eu tinha na altura, o Tany. Todos tinham medo do Tany, até eu lhe tinha um certo respeito, mas o João lá conseguia, como que por magia, amansar o animal.

Era algo intuitivo nele e lá se inculcou que queria seguir Medicina Veterinária. João destacava-se de nós todos por ser um perfeccionista.

Tudo o que fazia tinha que ser bem feito. Vestia-se bem a até a sua caligrafia era harmoniosa e elegante, impecavelmente direita aproveitando sempre toda a extensão do papel. O João era tão perfeccionista que, nos torneios do desporto escolar, era o único rapaz que ia a todos os treinos mas depois não ia aos jogos. O que era uma pena porque às vezes era o único guarda-redes que tínhamos e, como tal, tentávamos persuadi-lo a ir. Mas João era irredutível e não saia de casa, nem mesmo quando Pedro Inocêncio tentara usar psicologia invertida dizendo-lhe “É pá João, contigo ou sem tigo, nós jogamos na mesma”.

Mas isto para ilustrar o quão perfeccionista era o nosso amigo João Carlos, que tinha o sonho de ser médico veterinário. O problema é que para se entrar em Medicina Veterinária era preciso arrancar boas notas. Ele ficava chateado sempre que uma nota não correspondia às suas expectativas, principalmente na cadeira de matemática do Prof. Osvaldo.

Lembro-me de ver um dia o João furioso com a nota do último teste de matemática, que terá achado injusta. Nesse dia após a aula, enquanto fomos todos tomar uma imperial ao “Nautilus” com o professor Osvaldo, o João Carlos ainda amuado subiu para o seu apartamento no 4º andar. Mais uma vez, e com o professor ao nosso lado, tentámos persuadi-lo a descer. Mas mais uma vez João foi irredutível.

Mas não era só nos estudos que João era exigente para consigo próprio. Era-o assim também noutros ofícios, nomeadamente os do amor. Em termos de relações amorosas também o João se distinguia da seguinte maneira. Havia aqueles jagunços “pinga-amor”, nos quais modestamente me incluo, que atiravam em todas as direcções. E depois havia o João Carlos, o romântico, o perfeccionista, buscando a mulher que inteiramente servisse os seus critérios estéticos. É por isso que, com tantas raparigas na escola, ele resolveu apaixonar-se pela que era dita como “a mais bonita”. Não apenas da escola, mas de Elvas inteira. Escusado será dizer que passou as passas do Algarve, mas é o preço a pagar pela bravura de ambicionar tão alto. Os ossos do ofício. Preço alto pagou também o João pela sua atitude corajosa que sempre envergava perante o meu cão. É que um dia Tany tentou fugir do quintal e não gostou muito que o João tivesse tentado impedi-lo. Não tendo sido abonado com o dom da fala, o cão mostrou-lhe o desagrado à sua maneira. Em suma, atacou-o violentamente. Protegendo-se no chão das fortes dentadas do Tany João ia gritando “Guilherme, ajuda-me!”.

E eu assim fiz: toquei à campainha da minha casa em busca de alguém que viesse cá abaixo tirar dali o cão.

João era um grande amigo que eu tinha e não queria perdê-lo nesse dia. Até porque já estávamos atrasados para a aula de educação visual. Por isso toquei à campainha enquanto o cão o devorava. Toquei, toquei, até que lá apareceu a Cláudia à varanda e apercebendo-se do cenário desceu como uma seta para acudir o João.

Missão cumprida, pensei.

Mas eis que, no dia seguinte, o João visita-nos trazendo, em nome dos seus pais, uma lembrança – julgo que eram bombons – de agradecimento à Cláudia. Talvez por ser ainda pequeno não me ocorreu nesse dia nenhum sentimento de injustiça. A ficha só me caiu muitos anos mais tarde quando me questionei “Então e eu, que toquei à campainha, eu não mereço nada?”.

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