Esgueiro-me dia-a-dia pelos
meandros de um cenário “Pacman”. Mas não são fantasminhas que me perseguem, são
pessoas que me interpelam enquanto mastigam. Pessoas, que me obsequiam à mesa com
o conteúdo da boca ou, tecnicamente falando, com o seu bolo alimentar.
Ora, que tenho eu a dizer? Tenho
a dizer que gosto. Gosto do bolo alimentar, porque é moído e esbranquiçado. Porque
é amalgamado, por vezes com grumos amarelentos. Pois sim, que dizer? Agrada-me,
porque me mostra como também eu sou feito por dentro, revela-me o que lá vai no
interior da boca. Nada como alguém nos chamar à razão, fazer-nos baixar à Terra
com esta lição de humildade:
Sermos forçados a ver, sem
peneiras, com crua animalidade, aquilo que andamos a rebolar: o nosso próprio bolo
alimentar, é isso que vemos. Assim o extrapolamos, a partir do bolo alimentar
dos outros que à nossa frente se alimentam.
E esta é uma entre outras razões por
que aprecio comer sozinho. É esta minha sobranceria de quem se sente bem consigo
e dispensa ver-se por dentro.
Esquisitices de menino bem. Bizarrias
de sociopata, esta mania de quem aprecia saborear um alimento sem ter que
pensar no processo intrínseco de trituração e secreções digestivas. Coisas de homem
mal crescido, irascível, neurótico, inadequado, misantrópico, a quem faz
confusão entabular diálogos com empapados de carne a caminho de se fazerem quimo
e quilo – e sabe-se lá mais o quê em aventuras peristálticas radicais.
Perdoem-me esta mania, presunçosa e louca, a de saborear comida que se imagina perfeita nas mucosas da boca. Melhor será nem imaginar. Por isso não gosto que me dêem ideias, não me levantem esse véu da ignorância, caros compinchas, que por volta do meio-dia e meia me convocam para almoçar, sabem que é sempre a mesma dança:
“Pena que tomei tão tarde o pequeno-almoço”, ou qualquer que seja a desculpa para não almoçar socialmente, porque acho, na
minha modesta opinião, de que se trata de duas coisas diferentes: uma é
comer, outra conversar. Contrariamente a muita gente, gosto de comer sozinho. Aproveitar
o tempo para pensar, ouvir rádio, observar a vida em volta -
qualquer coisa desde que não um bolo alimentar, por favor, tudo menos o bolo
alimentar de alguém na minha frente.
Ou talvez, em alternativa, comer
e conversar - mas com algumas regras. Simples medida de gestão: só intervir
oralmente na conversa depois de se engolir aquilo que se levou do pratinho à
boca. É isso, bolas: ovo de colombo. Solução simples, óbvia, genial.
Como raio nunca ninguém se lembrou disso?
Vamos, deliciemo-nos, juntos, com o filete. E com o arroz de feijão. E o empapado que já foi manteiga e pão. Deliciemo-nos, pois, com a mescla de filete & feijão & arroz & manteiga & pão, mas guardemo-la dentro de nós. Não precisamos de o partilhar.
Guardemos, pois, se for possível, não der trabalho, nem muito massar, guardemos pois, esse fantasminha, mania minha, o bolo alimentar.
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