O Match Day era o que de melhor havia em futebol para o ZX Spectrum, apesar de não ser perfeito. E em Elvas, poucas mais diversões tínhamos para além de jogarmos à bola no terreno em frente à nossa casa. Mas muitas vezes preferíamos passar as tardes a jogar futebol no computador. Eu gostava particularmente de elaborar jogadas criativas e o Carlos tinha desenvolvido um especial jeito para marcar golos de cabeça.
Quanto ao Hugo, bem, ele era ainda pequeno mas tinha já desenvolvido uma técnica especial de execução de golos. Uma técnica que viemos a baptizar de “auto-golo”.
Muitas vezes jogava apenas o Carlos contra o computador, representando a selecção das nossas equipas contra um adversário imaginário enquanto eu fazia o relato dos jogos, torcendo pela nossa selecção. Mas não raras vezes zangava-me com ele, porque ganhávamos sempre com os mesmos golos de cabeça, fotocópias uns dos outros. O estúpido do computador deixava-se sempre enganar e pensava eu que o facto de ter só 48k não podia ser desculpa para tudo.
De qualquer forma, o Match Day, tal como muitos outros jogos de Spectrum, preenchia as nossas férias. Mas, como tantas outras coisas na vida, nem sempre era justo. Um dia, no único torneio em que toda a família assistia, o Carlos estava a ganhar-me com um golo seco de cabeça, apesar de todas as minhas jogadas espectaculares e criativas. Estava o jogo a terminar quando apliquei um remate em arco, certeiro ao ângulo superior direito.
Indefensável.
Só que, cruelmente, o jogo acabou um segundo antes da bola entrar e o Carlos ganhou. Mal teve tempo de fazer a festa. Lancei-me a ele furioso, pronto a desancá-lo, mas a família separou-nos e acusaram-me de mau perder. Fui duplamente injustiçado, mas é assim a vida. O Match Day era já uma metáfora do que ela tinha para mim reservado.
De vez em quando o nosso primo Ricardo juntava-se a nós nas férias e fazíamos longos serões com emocionadíssimos torneios de futebol, além de jogarmos ainda “Bruce Lee”, “Sabre wulf”, “Pijamarama”, “Jet Set Willy”, “Decatlon”, ou mesmo o dificílimo “Moon Alert”. Havia normalmente alguma discussão em torno de quem deveria jogar qual jogo, quem jogava a seguir a quem, e quem é que escolhia o jogo a que todos íamos jogar. De tal forma a discussão se encrespou, que me ocorreu a ideia de elaborar um calendário para as férias, tendo em conta as preferências de cada um e a justa partilha do tempo e da vez de jogar a que cada um tinha direito. Por exemplo, no dia 14 de Agosto, estava estipulado, para a parte de manhã, o seguinte:
1º jogo: “Target renegade”. 1º a jogar: Ricardo, 2º Eu, 3º Carlos, 4ºHugo.
2º jogo: “Freddy Hardest”. 1º a jogar: Hugo, 2º Carlos, 2º Eu, 3º Ricardo.
3º jogo: “Fantastic Voyage”. 1º Eu, 2ºRicardo, 3ºHugo, e em 4º lugar o Carlos.
Mas, claro, as tardes estavam reservadas para grandes campeonatos de Match Day. Isto até ao dia 16 de Agosto, quando o ZX Spectrum sobreaqueceu e pifou, numa altura em que eu estava quase a ganhar ao Ricardo.
Furioso, desaustinado, envilecido, agarrei no Spectrum e enfiei-o na arca frigorífica. Foi um acto desesperado, louco, passional, mais uma vez em frente de toda a família. E quando o Carlos foi resgatar o computador, já era tarde demais.
Às dezasseis horas e trinta e sete minutos, o Spectrum já não estava entre nós.
Nunca me perdoei por aquela atitude irreflectida. Nesse Verão, no dia 17 de Agosto de 1990, o Carlos, o Ricardo, o Hugo e eu, fizemos-lhe um bonito funeral e chorámos a sua perda. Mas os computadores, tal como os animais de estimação, não são insubstituíveis.
Poucos Verões depois nós tínhamos um novo computador, o Commodore Amiga, muito melhor que o Spectrum.
O “Match Day”, que parecia agora da Era da pedra lascada, deu lugar ao “Kick Off”. E o Ricardo juntava-se a nós nas férias para longos e renovados torneios. A extinção é o fim natural para todas as espécies. E a pressão selectiva acaba sempre, lentamente, por promover a origem de espécies novas. Assim, na vez dos mecanizados golos de cabeça, o Carlos encontrou neste jogo outra fórmula para ganhar, desta vez isolando directamente o ponta-de-lança com passes do meio campo. Mas há coisas que nunca mudam, e eu continuava a inventar jogadas espectaculares e criativas, mais uma vez sem grandes resultados.
Nota: há alguns anos cedi os direitos deste texto às Produções Fictícias no âmbito do programa "História Devida", mas não há mal nenhum em divulga-lo aqui com as devidas adaptações à vida real.
ResponderEliminar«Furioso, desaustinado, envilecido, agarrei no Spectrum e enfiei-o na arca frigorífica.»
ResponderEliminarLOOOOOOOOLLLLL
Nunca te conheci mau perder no Kick Off...provavelmente porque raramente perdias :D
ResponderEliminarDo Amiga lembro-me bem...era pior que cocaína!
ResponderEliminarE eu, invariavelmente, de fora de tudo isso :))
ResponderEliminarPati
Quis Deus que nascesses rapariga...
ResponderEliminarBem sei que não é desculpa para tudo, nem devemos escudar os nossos argumentos nesta sociedade patriarcal falocrática. Mas vê as coisas pelo lado positivo. Se olhares bem no fundo dos olhos do Ricardo, ou do Mano, ou de mim próprio, conseguirás detectar o vislumbre negro de uma mágoa, uma intensa frustração, que é nunca termos passado além da fase K no Moon Alert. E mesmo durante a noite por vezes acordo em sobressalto a pensar "afinal, qual era mesmo o objectivo do Pyjammarama? Para que é que apanhávamos e largávamos tantos objectos? Qual era, no fundo, o sentido daquele jogo? E o sentido da vida? De onde viemos nós e Para onde vamos?"