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sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Rambos da "cidade jardim"

Se há um professor de quem me recordo bem é o que nos leccionou português no ciclo preparatório. Falo do Prof. Duarte, o professor com o penteado mais esquisito e riçado que tivemos. Não se sabia se aquilo era um risco ao lado desde a zona da orelha, mas o resultado era como se ele andasse com um esfregão “Bravo” no topo da cabeça. E aquela cabeça, isso sim, andava à frente do seu tempo. Fala-se hoje de dar mais espaço à criatividade e empreendedorismo aos miúdos nas escolas, pois ora bem, já nesse tempo o Prof. Duarte fazia isso, reservando o tempo de aula das quartas-feiras para promover peças de teatro da nossa autoria.

Aquilo gerou um autêntico frenesi. E um dos maiores entusiastas com o teatro às quartas-feiras era o meu amigo Pedro Inocêncio. Eu, ele e mais dois ou três marmanjos formámos um grupo e começámos a levar aquilo cada vez mais a sério, com ensaios e tudo. Pedro era o ideólogo e, naturalmente, o líder. Era o líder porque confiávamos no seu talento, mas também porque sabíamos que não se podia contraria-lo muito, pois ele tinha certa propensão para fazer o número de amuar e virar costas quando as coisas não lhe corriam de feição. Número esse que, invariavelmente, terminava com alguém a insistir para ele voltar. E ele lá voltava, e lá continuávamos os ensaios com um empenho redobrado.

Foi assim que orgulhosamente criámos um vastíssimo leque de peças de comédia, muito embora a única de que hoje todos se lembram é o sketch do pionés, do Nuno Carmona. Neste sketch o Nuno revelava-nos como personagens de diferentes nacionalidades reagiam de forma diversa à mesma situação: sentar-se numa cadeira onde estava um pionés. Idiossincrasias que, claro, não favoreciam particularmente o caso do “português”. Mas principal furor fazia a cena em que o Nuno imitava um soldado alemão nazi marchando na direcção da cadeira onde o pionés o ia ferrar.

Ainda hoje, toda a gente se lembra disto. Já quanto a todas as peças que eu e o Pedro inventámos, discutimos, ensaiámos e trouxemos à luz toda a santa quarta-feira, caíram no esquecimento.

Tratou-nos mal, a História. Mas nessa altura tínhamos a ilusão de que um futuro verdejante na área artística nos esperava. E não contentes com o teatro, saltámos para uma carreira no cinema. Enfim, quando digo cinema, falo de uma coisa ainda rudimentar, já que a única câmara que tínhamos era uma antiga Super 8 que, viemos mais tarde a saber, não funcionava desde 1970.

Mas tudo o que fizemos ficou gravado onde é mais importante: na nossa memória. E é nas franjas da memória que suspendem obras imortais de acção e aventura que foram as nossas adaptações de “Rocky” e de “Rambo”. Rambo teve ainda direito a uma sequela, uma visionária mistela de Stallone com Senhor dos anéis, “Rambo II: As duas torres”, em que as duas torres eram, obviamente, os dois edifícios da “cidade jardim”. Para o bem e para o mal, eram os únicos prédios que tínhamos.

Mas aqui a grande questão prende-se com o protagonista. Quem era, afinal, o herói de todas estas sagas? Quem é que fazia de Rambo, de Rocky e de Chuck Norris se fosse preciso?

Evidentemente, era o Pedro Inocêncio. Digo evidentemente porque isto é história que vem de trás. Quando ambos chegámos a Elvas e nos juntámos à turma na 3ª classe, nessa altura eu também me chamava Pedro. Quem não gostou da ideia foi o professor Xarepe, para quem haver dois Pedros na turma era um disparate. Xarepe decretou então que um de nós teria que usar o segundo nome próprio. E se mais evidências não houvesse de que a escolha recaiu sobre mim, não há pelo menos nenhum registo de ter existido em Elvas um tal de “Manuel Inocêncio”.

A partir daí, eu soube. Soube que estava condenado a ser o “número 2”, o co-protagonista, o adjuvante, ou o mau da fita. Se fizéssemos o Sherlock Holmes, eu seria o Watson. Se fizéssemos o D. Quixote, eu seria o Sancho Pança.

Se fizéssemos uma cena em que Rambo estava na prisão e um guarda prisional sádico ia barbeá-lo em seco, eu seria esse guarda. E de facto fui. É das cenas que me lembro mais vividamente. Alguém agarrava o Rambo por trás enquanto eu, com uma pedra afiada, me aproximava para barbeá-lo. Isto parece algo Freudiano, mas foi mesmo assim.

Sinceramente, não sei onde é que fomos buscar aquela ideia. Haveria mesmo, no filme original, uma cena de tortura em que alguém tenta barbear Rambo em seco?

Em seco?

Parece, no mínimo, ridículo. Mas a verdade é que para nós, moços imberbes, aquilo de barbear em seco devia causar-nos uma certa espécie. E o Pedro representou a cena com tal realismo que pontapeou cheio de raiva a pedra que me foi parar aos queixos. Deve ser por isso que me lembro da cena tão vividamente.

Noutro episódio ainda, Rocky andava a dar cabo do canastro a nós todos no ringue de boxe, que era o quintal das traseiras da minha casa. Já tinha aviado o Fernando, já tinha aviado o Vivas, e quando foi a minha vez eis que, sem que fosse intencional ou motivado por qualquer tipo de vingança, atinjo-o a sério na cara. É preciso dizer que aquilo era um tempo em que não havia duplos. Quem apanhava, apanhava mesmo. E quantas vezes tal não terá acontecido a grandes ícones do cinema como Charlie Chaplin, que também não usava duplos. E até mesmo ao próprio Sylvester Stallone, a quem se atribui o problema de dicção a uma sapatada que lhe deixou o maxilar à banda. Mas nenhum destes argumentos convenceu o Pedro, que amuou e virou costas, rumo ao horizonte. Todos sabíamos, era o seu número. Mas eis que, desta vez, nós, os desancados, os adjuvantes, os maus da fita, entreolhámo-nos como quem se põe a pensar “E se houvesse um novo Rocky?”. Já o Pedro tinha atravessado o portão e ainda ninguém o tinha chamado. Os seus passos foram-se tornando lentos, cada vez mais lentos, sob o nosso olhar expectante. Até que, já lá ao fundo, a silhueta de Pedro parou uns instantes junto a um arbusto.

“Está a órinar!” - exclamou um de nós. De facto, pouco tempo depois, Rocky estava de volta.

Tudo a postos de novo, e regressámos aos combates de Super 8 em riste. Durante as filmagens havia algo que nos dizia “vai sair daqui uma coisa em grande”.

2 comentários:

  1. Muito bom! Estas estórias são deliciosas e (ainda por cima) verdadeiras.

    O prof. Duarte tinha realmente um paciência de Job. Eu não sei se deixar-nos fazer as peças de teatro eram obra de um visionário ou era só para nos acalmarmos. Aquelas aulas eram um grande reboliço. A memória mais viva que tenho dele é de um dia em que estávamos especialmente rebeldes escrever no quadro "INCORRIGÍVEIS".

    Só tenho de fazer justiça ao prof. Xarepe que foi o primeiro a incentivar as peças de teatro nas aulas.

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  2. Boa chamada de atenção! Já fui ajustar bem o cilício à perna como penitência para as minhas imprecisões.

    Tens razão, foi realmente o Prof. Xarepe que nos meteu o bichinho do teatro, com ele até bandas de rock formámos.
    E às tantas fomos nós que influenciámos o Prof. Duarte para este dar continuidade à nossa senda "artística".

    Obrigado pelas tuas opiniões construtivas :)

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