Já foi aqui algumas vezes referido o nome do Fernando Gama. Apareceu de fugida na história do Zé Luís. Detectei-o também, ainda que de raspão, na história dedicada ao Pedro Inocêncio. Parece ser um dos amigos que estava sempre por ali, a partilhar as aventuras. E fica então a pergunta no ar: quem era, afinal, o Fernando?
Para responder a esta questão sugiro que levantemos voo da blogosfera e façamos uma curta viagem no espaço e no tempo. Numa remota tarde de Verão, algures numa paisagem alentejana, à beira do rio Guadiana, encontra-se o que parece ser um acampamento cigano. Ao aproximarmo-nos vemos que é uma festarola popular patrocinada pela Liga dos Amigos do Hospital de Elvas. Nesse arraial há um bailarico onde velhotes se bamboleiam, há um piquenique, onde crianças enfardam à tripa forra, e há um jovem que se encontra, com um sorriso de orelha a orelha, em cima de um pódio. Ele está a receber uma medalha por ter vencido a sessão de jogos que decorrera durante a manhã.
Mais concretamente, ele ganhou o jogo do lançamento do ovo.
O lançamento do ovo era um jogo de equipa, composto por dois jogadores, em que um dos elementos tinha que lançar um ovo cru ao parceiro e este tinha que o agarrar sem que o mesmo se quebrasse. Vencia a equipa que conseguisse um lançamento bem sucedido a maior distância. Dito isto, o meu irmão fez parelha com o Fernando e fizeram um jogo memorável, não dando qualquer hipótese às outras equipas. Num próximo segundo lugar ficou um casal na casa dos 80, que só não ganhou porque, quando chegaram a uma certa distância, o velhote do casal já não tinha força suficiente para arremessar o ovo à sua companheira, apesar dela lhe bradar a goelas vivas “COM MAIS EMBALAGEM, ZÉ! ATIRA COM MAIS EMBALAGEM!
Mas o velhote também já não ouvia bem.
Destaco este momento porque é difícil esquecer o brilho nos olhos do Fernando ao receber a medalha. Ainda hoje acho que foi o prémio mais emocionante, e mais merecido, que vi alguém receber. Repare-se que esta medalha não tinha apenas o valor inerente ao jogo do ovo. Era mais do que isso. Eu senti aquela atribuição como a coroação de todo um percurso, um prémio carreira, para enaltecer a maior qualidade do Fernando: a perseverança. Perseverança de que ele tanto precisou perante o insucesso. Nomeadamente, o insucesso a jogar ao berlinde. Passo a explicar. Muitos de nós não tínhamos grande perícia nem dominávamos a técnica do berlinde com mestria, mas poucos tinham tão pouca pontaria como o Fernando.
Talvez porque ele usasse o dedo indicador para projectar o berlinde em vez do “pai de todos”, técnica que, de resto, era usada pelo mago do berlinde, Nuno Vivas. Quando Vivas armava as duas mãos para disparar um berlinde, todo ele parecia uma elegante espingarda “flobert” com uma mira de longo alcance.
Já o Fernando era tão desajeitado que as suas mãos formavam o que parecia ser uma deselegante e medieval catapulta, com as tábuas a saltar por todos os lados. Via-se logo que dali não podia sair boa coisa.
Sempre que o Vivas jogava, as pessoas que assistiam formavam um estreito corredor entre ele e o alvo. Sabíamos que a sua flobert não erraria por muito. Já quando era o Fernando a jogar, as pessoas afastavam-se um pouco mais, abrindo uma espaçosa clareira à sua volta. Até o Luís Laranjeira, que estava um dia atrás das costas dele, deu um prudente passo atrás, desculpando-se com um “Nunca se sabe…”.
E no entanto num dia quase se fez história. Fernando ergue a sua catapulta e projecta o berlinde que, num disparo só, saca todos os berlindes do Bôco. Fernando dá um salto de alegria mas, caprichosamente, o berlinde que arremessara ficou ele mesmo retido na cova. “Ah Ah! Os cabos já estavam ditos!” asseverou o mago, exibindo-lhe o pai de todos. E perdoem-me, todos aqueles que não cresceram nas décadas de 70 e 80, este jargão técnico do jogo do berlinde.
Mas o jogo do berlinde é só um mero exemplo. A paciência do Fernando aguentava muito mais do que isso. Aguentava, por exemplo, as parvoíces dos gaiatos da turma que viam nele o alvo mais passível a actos de bulling. Porque sim, naquela altura já havia bulling - não éramos assim tão atrasados - mas era um bulling “softcore”, pelo menos na nossa turma. Eram os escarniozinhos, as chacotazinhas, os agravozinhos, perpetrados pelos mais irrequietos e mordazes do nosso grupo.
Mas porque era o Fernando Gama um alvo?
Mais tarde reflecti sobre o assunto e descobri. E o motivo é tão simples como óbvio. Fernando era um alvo porque era, de todos nós, o mais generoso. É verdade, e a verdade dói meus amigos, mas é a mais pura verdade. O Fernando era, de nós todos, quem tinha melhor coração. Deixar que fizessem dele alvo de bulling era um acto de altruísmo e superioridade do Fernando.
A verdade é que o Fernando gostava de se dar bem com todos, mesmo aquando das vicissitudes da adolescência que levaram o grupo a dividir-se em diferentes sectores. Havia, por exemplo, a ala dos alinhados, onde eu e o João Carlos nos incluíamos. Depois havia a ala dos rebeldes, uma vertente mais “cool” cujos pré-requisitos eram a iniciação no tabaco, álcool e noitadas em discotecas. Mundo onde viviam, por exemplo, o Gustavo e o Vivas.
E havia o Fernando, um misto de alinhado e rebelde, fazendo a ligação entre os dois mundos.
A verdade é que a posição de charneira do Fernando veio a revelar-se muito útil. Foi através dele que pus, pela primeira vez, um pé numa discoteca. Ideia que me assustava, pois eu não sabia nem gostava de dançar, mas era condição necessária para se ser “in” em Elvas. Especialmente na moda, na altura, era passar a música “Sadeness” dos Enigma nas “discos” - era como que o ponto alto da noite - e havia uma forma própria de se dançar aquilo.
Amigo que era, e com espírito de missão, Fernando ensinou-me a dançar Enigma. Durante toda essa tarde de sábado eu estudei a dança, ensaiei frente ao espelho.
E à noite, o palco foi nosso.
Levantemos voo de novo e olhemos de cima para a discoteca. Lá em baixo, uma multidão mexe-se e dança com sensualidade. No meio da multidão abre-se uma clareira. No meio da clareira, vestidos de preto, eu e o Fernando curtimos Enigma.
«Muitos de nós não tínhamos grande perícia nem dominávamos a técnica do berlinde com mestria, mas poucos tinham tão pouca pontaria como o Fernando. »
ResponderEliminarAinda bem que não te lembras. Ufa!