O primeiro animal de estimação de Zé Luís desde cedo definiu o carácter deste nosso amigo. Foi no pátio do ciclo preparatório que Zé Luís o encontrou, logo o acolhendo e baptizando. Deu-lhe o nome de Hugo. Convém dizer que Hugo não era bem um cão, também não era bem um gato.
Mais exactamente, Hugo era um louva-a-deus.
Muitos de nós espantámo-nos ao ver a ternura do Zé por um bicho pelo qual sentíamos aversão ou temíamos, e pensei “este fulano vai ser um dia um entomólogo!”.
O facto de hoje o Zé Luís ser informático de profissão não invalida a minha conjectura visionária. Isto porque, para quem não sabe, os louva-a-deus são geneticamente muito semelhantes às baratas (são uma espécie de baratas predadoras) e, como toda a gente sabe, os primeiros bugs informáticos eram precisamente baratas que circulavam dentro dos sistemas quando os computadores tinham ainda proporções gigantescas. Daí o nome, que ainda hoje ficou, de “bugs”.
Mas voltando ao Zé, o que ele tinha de admirável era este contraste de ser o mais forte de todos nós e interessar-se por uma criatura tão frágil como um louva-a-deus.
O Zé Luís não era brigão nem gostava de conflitos. Claro que, tal como os outros rapazes da turma, era aficionado por filmes de pancadaria e de cariz militar, não fossemos nós da altura em que o Pentágono patrocinava cerca de 80% dos filmes produzidos em Hollywood. E essa ficção que víamos na TV era canalizada pelo Zé para actividades criativas de inegável valor.
Lembro-me por exemplo que num concurso de posters na disciplina de Educação Visual, Zé Luís ganhou o primeiro prémio com uma magnífica composição de um cenário bélico, cheio de soldados e tanques, caças e explosões, e onde, com letras garrafais, aparecia por cima o título “A Gerra”.
Aparte a falta do “U” que foi perdoado pela professora – a mesma professora que não perdoou que eu, o João Carlos e o Fernando Gama tivéssemos chegado atrasados no dia em que o João foi severamente atacado pelo meu cão e chegou à aula com as costas besuntadas de nódoas negras (mas agora que penso bem, porque é que o Fernando também chegou atrasado? Ele não tinha desculpa, devia ter sido o único a levar com a falta) – o poster do Zé Luís esteve longe de ser a sua maior criação.
Eram outras bombas, que não as que explodiam no poster largadas pelos aviões aliados em plena Berlim. Mas eram também de Berlim, as que nos faziam derreter de deleite e nos levavam ao céu.
Eram as bolas de Berlim (ou de berlinde, como alguns diziam) da padaria do Zé.
Para ser inteiramente justo, esta criação deve ser imputada à mãe do Zé Luís, que era a dona da padaria. Mas todos nós conhecíamos a padaria como sendo “a Padaria do Zé”. Era, para nós, esse o nome da padaria. Excepto para os amigos do irmão do meio do Zé, para esses a padaria chamava-se “a Padaria do Tó”. E assim lá iam uns à padaria do Tó, outros à padaria do Zé, mas no fundo iam todos mamar do mesmo: aquelas divinas, incomparáveis, bolinhas de Berlim.
Longe deste ambiente paradisíaco patrocinado pela família Alface Gonçalves, havia na escola outro rapaz que, contrariamente ao Zé Luís, era minúsculo, mas mais vil que uma cobra. Andava sempre a provocar e a ameaçar toda a gente. Por vezes chegava-se a um de nós e pregava uma chapada, ou tentava atingir-nos com cuspo que acumulava deliberadamente na boca.
Ninguém retaliava, pois conhecíamos-lhe as origens duvidosas acopladas a um magote de irmãos mais velhos, prontos a desancar quem tocasse no menino. E este menino dava pelo seu nome de Américo.
O Américo era um problema que tolerávamos porquanto se mantivesse dentro das paredes da escola. Mas uma vez estávamos alguns de nós numa agradável partida de futebol quando o vimos a aproximar-se. Jogávamos com a bola que eu acabara de receber de presente de aniversário. Uma bola novinha em folha, vinda da loja Perdigão. Uma bola oficial topo de gama, reluzente, esplendorosa, gerando uivos de furor no meu grupo de amigos: “É de catechumbo!!!” exclamava o Fraldinhas, maravilhado.
E foi essa a primeira vez, e também a última, que jogámos com ela, porque assim como chegou o Américo foi-se outra vez embora, levando a bola com ele.
Apesar da frustração mais uma vez não retaliámos. E o Américo lá ia fazendo a sua vida, batendo em quem quisesse, cuspindo e roubando quem lhe apetecesse.
Isto até um dia. Um dia em que o Zé Luís disse “basta”. Aproximou-se de Américo, que estava a chatear um de nós e, muito simplesmente, pegou nele ao colo arrastando-o dali para fora. Américo esperneava enquanto era levado para longe, esmagado pelo peso da humilhação, pior do que ter levado uma valente tareia.
Nesse dia Américo sentiu-se, pela primeira vez, minúsculo. Mais minúsculo que um insecto.
Que um louva-a-deus.
Que post delicioso!
ResponderEliminarDo Américo também me lembro que andava sempre acompanhado por um esbirro ainda mais minúsculo e irritante que ele. O Américo veio-se a revelar ser do tipo ladra mas não morde. Uma vez o Américo e seu esbirro resolveram meter-se com o Gustavo. A este bastou mandar a mochila para o chão e ir avançar na direcção deles de peito feito. Deram logo meia volta.
Outra observação: alguma vez nós sabíamos o que queria dizer "entomólogo" naquela altura?
Memórias deliciosas!
Obrigado Nuno, pelo teu comentário cheio de creme. De facto, nenhum de nós sabia o que era um entomólogo na altura. Nem hoje saberá quem não trabalhar na área da Biologia. Mas vendo bem as coisas, na altura também estávamos longe de saber o que era ser biólogo. Por isso, falta de rigor por falta de rigor, fui pela opção mais danosa para a verdade dos factos.
ResponderEliminarMas atenção, apesar de alguns adornos, as minhas premissas são verdadeiras, como por exemplo a história do louva-a-deus Hugo, que de facto existiu.
Obrigado por me relembrares da cena do Gustavo vs. Américo, confesso que me tinha esquecido dessa. Assim ficou só o Zé Luis com os louros e eu, como sempre, na pele do cobardolas.
Já somos dois ;-)
ResponderEliminarMas o Américo deve trabalhar na Telefac ou então pastoreia ovelhas:-D
Amé-é-é-é-érico ;)
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