a-chave-dicotómica

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quinta-feira, 31 de julho de 2014

"Why don't I have three heads?"

Ou diria eu, em jeito de variante desta citação de Amadeus de Milos Forman: 

Why don't I have two bodies?

"It's OK, I wouldn't remember me either"


Lester Burnham
(compreendo-te, Lester)

domingo, 27 de julho de 2014

Surpresa torpe nos anéis do anel

O terror que sinto ao entrar dentro de uma loja é basicamente o mesmo que me acompanha noutros espaços públicos, e que é esta clara noção de que sou o único ente desajustado entre todos quantos vagueiam em meu redor. Mais ainda quando se trata de uma loja de roupa feminina, com luzes brancas que me farolam como uma carrinha monovolume em alta velocidade que se aproxima com a música aos gritos.
E pior ainda é quando procuro algo que não sei bem o que é. Uma “roupa”, sei lá, um tecido qualquer, ou uma peça de bijuteria. Antes descobrir os mistérios da alquimia. Mas vá lá, com algum esforço conseguirei. Não desistir, vamos lá, uma t-shirt, um sari, uma cuequita que seja. Algo que me salve da fraca figura que farei no dia de aniversário desse outro ente que partilha comigo uma vida conjugal e espera, por mais que não o diga, uma surpresa. Todos esperamos sempre uma surpresa.
E é em virtude desse momento que me ponho a cirandar, com passos acanhados, olhos esguios, boca pusilânime, pelos labirínticos corredores de onde temo que saltem monstros em cada esquina. Por monstros leia-se as meninas das lojas, funcionárias com olhares de ciclope que me perseguem por onde quer que eu me enfie nos interstícios da loja. Sim, é verdade que me sinto perseguido enquanto esquadrinho esses locais sinistros onde lava borbulhante parece escorrer pelo chão avisando-me que me aproximo da ravina onde poderei largar o anel.
Mas desengano-me. Não tenho um anel para largar. Tenho sim um anel, ou pulseira ou colar, para anexar à lista de presentes de aniversário. A surpresa, oh sim, a tal surpresa, bem que pode ser um anel. Vamos procurar um anel. Vamos lá, ombros direitos, força.
Resistiremos, com olhar atento, às investidas dos predadores em volta. Escaparemos ilesos às miradas de soslaio, aos franzires de sobrolho que me sondam e analisam, enquanto percorro com os dedos os vários adereços perfilados nos mostruários. Sobreviveremos aos julgamentos e vilipêndios dos olhares alheios, que em voo a pique nos caçam a segurar numa das mãos um dos adereços.
Anel que logo largo, escapando a tempo que me detectem o mau gosto, a má escolha a má decisão. E não decido, resto-me a perscrutar a bijuteria alinhada, que me devolve um esgar de desapreço. “Bronco, não fazes a mínima ideia” – dizem-me, em chinês provavelmente. Mas tento jogar o jogo, sair por cima. Os meus olhos vagabundeiam em direcção incerta, não se fixam concretamente em lugar nenhum. Tomem lá abutres, juízes do meu mau gosto. Não fazem ideia onde recai o alvo da minha quase-preferência. Não imaginam qual o objecto na montra que me chama a atenção, para onde os meus olhos vão e voltam, como dois pêndulos, embalados pela inércia da minha indecisão.
Esperarei apenas que se vão embora, que desandem, para segurar o anel (talvez o anel) na minha mão. Evitarei a vossa censura, ó pessoas em volta, pessoas a quem atribuo o peso da minha própria ambiência interna, o jugo da minha auto-censura.
Mas convenhamos, em parte estes complexos têm razão de ser, pois nunca acerto na raça do anel, ou da pulseira ou do colar. “Ah caramba, era mesmo o outro – aquele que preteri, o que ela afinal teria gostado mais”. Porque claro, ela – ou elas, para generalizar - já conhecem de ginjeira todos os anéis e colares das lojas. Sabem até, de memória, os preços de cada peça e por que ordem estão dispostas. Por isso lá se vai no dia seguinte trocar de artigo, ou porque o tom não era o certo, ou porque o tamanho não era o certo, ou porque a loja não era a certa.
Mas até aqui tudo bem, desde que o presente de aniversário não sirva para criar um transtorno adicional e significativo ao aniversariante. É até um pretexto para voltar ao centro, dar uma voltinha dos tristes. Vai-se lá, troca-se, fica-se a saber qual teria sido a opção certa, aponta-se tudo, mentalmente, e, eventualmente, esquece-se tudo novamente.
Mas estaria tudo bem, não fosse o último presente de todos, o mais trágico de todos. Aquele em que me armei em aprendiz de feiticeiro. Chico-esperto, pensei que desta conseguia evitar uma loja, ir pela opção fácil. “HeHeHe”, pensei eu de tacha arreganhada, arriscando-me numa compra online.
“Online”, não é? Que bom que seria, para facilitar. Ai tão bom, a vergonha que se pouparia, os passos esguios e olhos vácuos, de loja em loja, a cirandar. “Online”, pois é.
Foi assim, este ano, o meu presente de aniversário. Podem as más-línguas argumentar que foi impessoal, menos romântico, mas eis que acabou assim: nós os dois, lado a lado, no cantinho do sofá, de laptop ao colo, ligado, aberto no site da loja, onde escrevemos juntos uma cartinha, um e-mail (assim o requerem no site), a solicitarmos a devolução da prenda, em troca do devido reembolso. Isto tudo na meia-luz da sala, copo de vinho na mão, a cabecinha dela no meu ombro, dedo a apontar para o ecrã, mostrando-me como se faz (ela é batida nestas coisas), para termos a certeza que faço tudo bem e recebemos de volta a quantia certa. E aí está:
“Your mail has been sent”. Conseguimos! Soca aí! Viva! Tchim-tchim! vitória! Resta esperar pela resposta, claro, mas correrá tudo bem. Teremos, certamente, o dinheiro de volta. Surpresa, querida! Adoro-te! Muitos parabéns!

terça-feira, 22 de julho de 2014

"Peter"

Atingi-o quando nasci. 

(mas cada um tem o seu, não importa em que nível. O importante é termos a clareza de espírito para saber identificá-lo e, em função disso, gerirmos a nossa vida).