a-chave-dicotómica

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domingo, 31 de outubro de 2010

Jack da Silva

Contrariamente ao Prof. Duarte havia a professora de inglês, Clara Zagalo, que chegou com uma ideia muito inovadora mas que se veio a revelar um fracasso.

Era a primeira aula de inglês a que íamos assistir na vida, e eu – e aposto que o Figueirinha também – tinha estado na véspera a estudar o manual para me averiguar sobre a dificuldade da coisa. Resultado: no dia seguinte eu já trazia o “How do you do?” na ponta da língua.

Mas eis que, logo na primeira aula, a professora chega com esta invenção que nos apanhou incautos. E que ideia iluminada era essa? Como todos se deverão lembrar, a ideia era atribuir nomes ingleses a cada um de nós.

Cheguei ainda a pensar que era para adoptarmos o nosso próprio nome para inglês e por momentos fiquei radiante. Poderia ser o Peter, como o Peter Parker, personagem que vestia o fato de homem-aranha nas bandas-desenhadas. Mas mesmo que fosse o Pedro Inocêncio a adoptar o nome Peter, pensei que poderia ao menos usar o meu segundo nome em inglês, William, em vez do Guilherme, ou mesmo “Ilherme”, como alguns me chamavam. E até poderia ser que pegasse lá na escola. Quem sabe começariam a chamar-me William nos recreios, ou mesmo Willie, ou Bill.

Mas contra todas as minhas conjecturas não era o nosso nome que ia ser adaptado. Era uma lista previamente alinhavada de nomes ingleses que iriam ser sorteados para cada um de nós. Havia nomes sonantes, como James, Steven, ou, lá está, o Peter.

Mas a mim foi-me calhar o Paul.

Que é como quem diz, querias ser o Pedro é? Então toma lá o Paulo. Logo a mim, que não gosto do nome Paulo. Ainda por cima já tínhamos na turma um Paulo (o Paulinho) e não me apetecia nada andar com o nome do Paulinho.

Foi assim a minha primeira aula de inglês, contra as minhas expectativas. Felizmente, na segunda aula, o Zé Manel mostrou também desagrado para com o nome que lhe tinha calhado em rifa e perguntou à turma se alguém queria trocar. Quando reparei que ele era o Jack levantei logo o braço. Não havia comparação entre o Paul e o Jack. Jack era muito melhor do que Paul. Jack, era Jack Nicholson, era Jack the Ripper, era Bomb Jack.

Mas não me lembro se ele quis trocar comigo.

Tal como em muitas outras disciplinas, a “chapa 4” das minhas notas a inglês sempre foi o “Satisfaz Bastante”. Não sei o que é que os professores viam em mim, mas tiravam-me logo a pinta de um aluno de 4. Lá está, chapa 4.

Era como que dissessem “epá, tu satisfazes, mas não muito, apenas bastante”. Sempre fiquei colado a este rótulo do “Satisfaz Bastante”. Eu próprio me convenci disso e disseminei o conceito por todos os cantos da minha vida. Sou, politicamente, um satisfaz-bastantista, um “sim ou sopas”. Na minha profissão, e até na minha vida privada, o satisfaz-bastantismo é traço que me caracteriza. Satisfaço, mas não muito.

Satisfaço q.b., estou na média. Sou mediano, vá. Não desagrado, mas não faço gritar de prazer. Faço as coisas mais ou menos bem feitas. Não muito más. Nunca perfeitas.

Mas um dia A Prof. Clara Zagalo quase fez história na minha ainda tenra carreira de satisfaz-bastantista ao dar-me a nota mais estranha que já recebi.

E a nota foi, sem tirar nem pôr, “Quase excelente”.

Lá está. Quase, sempre o quase. Nunca o “efectivamente”, o “arrebatador”, o “dispo-me já aqui”, o “totalmente”. Sempre satisfiz, mediocremente, “bastante”.


Hoje invejo o Luís Laranjeira, que se juntou à nossa turma no 2º ano do ciclo, trazendo consigo um ligeiro problema do 1º: “Professora o inglês para mim… é chinês”.

Ao menos ele era “sopas”.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Ainda tenho este cromo

Só que já está todo nu, leia-se, sem capa, sem corpete prateado, sem saiote, sem pistola. Mas até me deve ter agradecido, o coitado. Alguns destes bonecos vintage da StarWars mais pareciam umas drag queens.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O enigma Fernando

Já foi aqui algumas vezes referido o nome do Fernando Gama. Apareceu de fugida na história do Zé Luís. Detectei-o também, ainda que de raspão, na história dedicada ao Pedro Inocêncio. Parece ser um dos amigos que estava sempre por ali, a partilhar as aventuras. E fica então a pergunta no ar: quem era, afinal, o Fernando?

Para responder a esta questão sugiro que levantemos voo da blogosfera e façamos uma curta viagem no espaço e no tempo. Numa remota tarde de Verão, algures numa paisagem alentejana, à beira do rio Guadiana, encontra-se o que parece ser um acampamento cigano. Ao aproximarmo-nos vemos que é uma festarola popular patrocinada pela Liga dos Amigos do Hospital de Elvas. Nesse arraial há um bailarico onde velhotes se bamboleiam, há um piquenique, onde crianças enfardam à tripa forra, e há um jovem que se encontra, com um sorriso de orelha a orelha, em cima de um pódio. Ele está a receber uma medalha por ter vencido a sessão de jogos que decorrera durante a manhã.

Mais concretamente, ele ganhou o jogo do lançamento do ovo.

O lançamento do ovo era um jogo de equipa, composto por dois jogadores, em que um dos elementos tinha que lançar um ovo cru ao parceiro e este tinha que o agarrar sem que o mesmo se quebrasse. Vencia a equipa que conseguisse um lançamento bem sucedido a maior distância. Dito isto, o meu irmão fez parelha com o Fernando e fizeram um jogo memorável, não dando qualquer hipótese às outras equipas. Num próximo segundo lugar ficou um casal na casa dos 80, que só não ganhou porque, quando chegaram a uma certa distância, o velhote do casal já não tinha força suficiente para arremessar o ovo à sua companheira, apesar dela lhe bradar a goelas vivas “COM MAIS EMBALAGEM, ZÉ! ATIRA COM MAIS EMBALAGEM!

Mas o velhote também já não ouvia bem.

Destaco este momento porque é difícil esquecer o brilho nos olhos do Fernando ao receber a medalha. Ainda hoje acho que foi o prémio mais emocionante, e mais merecido, que vi alguém receber. Repare-se que esta medalha não tinha apenas o valor inerente ao jogo do ovo. Era mais do que isso. Eu senti aquela atribuição como a coroação de todo um percurso, um prémio carreira, para enaltecer a maior qualidade do Fernando: a perseverança. Perseverança de que ele tanto precisou perante o insucesso. Nomeadamente, o insucesso a jogar ao berlinde. Passo a explicar. Muitos de nós não tínhamos grande perícia nem dominávamos a técnica do berlinde com mestria, mas poucos tinham tão pouca pontaria como o Fernando.

Talvez porque ele usasse o dedo indicador para projectar o berlinde em vez do “pai de todos”, técnica que, de resto, era usada pelo mago do berlinde, Nuno Vivas. Quando Vivas armava as duas mãos para disparar um berlinde, todo ele parecia uma elegante espingarda “flobert” com uma mira de longo alcance.

Já o Fernando era tão desajeitado que as suas mãos formavam o que parecia ser uma deselegante e medieval catapulta, com as tábuas a saltar por todos os lados. Via-se logo que dali não podia sair boa coisa.

Sempre que o Vivas jogava, as pessoas que assistiam formavam um estreito corredor entre ele e o alvo. Sabíamos que a sua flobert não erraria por muito. Já quando era o Fernando a jogar, as pessoas afastavam-se um pouco mais, abrindo uma espaçosa clareira à sua volta. Até o Luís Laranjeira, que estava um dia atrás das costas dele, deu um prudente passo atrás, desculpando-se com um “Nunca se sabe…”.

E no entanto num dia quase se fez história. Fernando ergue a sua catapulta e projecta o berlinde que, num disparo só, saca todos os berlindes do Bôco. Fernando dá um salto de alegria mas, caprichosamente, o berlinde que arremessara ficou ele mesmo retido na cova. “Ah Ah! Os cabos já estavam ditos!” asseverou o mago, exibindo-lhe o pai de todos. E perdoem-me, todos aqueles que não cresceram nas décadas de 70 e 80, este jargão técnico do jogo do berlinde.

Mas o jogo do berlinde é só um mero exemplo. A paciência do Fernando aguentava muito mais do que isso. Aguentava, por exemplo, as parvoíces dos gaiatos da turma que viam nele o alvo mais passível a actos de bulling. Porque sim, naquela altura já havia bulling - não éramos assim tão atrasados - mas era um bulling “softcore”, pelo menos na nossa turma. Eram os escarniozinhos, as chacotazinhas, os agravozinhos, perpetrados pelos mais irrequietos e mordazes do nosso grupo.

Mas porque era o Fernando Gama um alvo?

Mais tarde reflecti sobre o assunto e descobri. E o motivo é tão simples como óbvio. Fernando era um alvo porque era, de todos nós, o mais generoso. É verdade, e a verdade dói meus amigos, mas é a mais pura verdade. O Fernando era, de nós todos, quem tinha melhor coração. Deixar que fizessem dele alvo de bulling era um acto de altruísmo e superioridade do Fernando.

A verdade é que o Fernando gostava de se dar bem com todos, mesmo aquando das vicissitudes da adolescência que levaram o grupo a dividir-se em diferentes sectores. Havia, por exemplo, a ala dos alinhados, onde eu e o João Carlos nos incluíamos. Depois havia a ala dos rebeldes, uma vertente mais “cool” cujos pré-requisitos eram a iniciação no tabaco, álcool e noitadas em discotecas. Mundo onde viviam, por exemplo, o Gustavo e o Vivas.

E havia o Fernando, um misto de alinhado e rebelde, fazendo a ligação entre os dois mundos.

A verdade é que a posição de charneira do Fernando veio a revelar-se muito útil. Foi através dele que pus, pela primeira vez, um pé numa discoteca. Ideia que me assustava, pois eu não sabia nem gostava de dançar, mas era condição necessária para se ser “in” em Elvas. Especialmente na moda, na altura, era passar a música “Sadeness” dos Enigma nas “discos” - era como que o ponto alto da noite - e havia uma forma própria de se dançar aquilo.

Amigo que era, e com espírito de missão, Fernando ensinou-me a dançar Enigma. Durante toda essa tarde de sábado eu estudei a dança, ensaiei frente ao espelho.

E à noite, o palco foi nosso.

Levantemos voo de novo e olhemos de cima para a discoteca. Lá em baixo, uma multidão mexe-se e dança com sensualidade. No meio da multidão abre-se uma clareira. No meio da clareira, vestidos de preto, eu e o Fernando curtimos Enigma.

Este blog encontra-se temporariamente fora de serviço

Por favor dirija-se ao blog mais próximo.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Hugo at work

Aqui está o bug informático

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Rambos da "cidade jardim"

Se há um professor de quem me recordo bem é o que nos leccionou português no ciclo preparatório. Falo do Prof. Duarte, o professor com o penteado mais esquisito e riçado que tivemos. Não se sabia se aquilo era um risco ao lado desde a zona da orelha, mas o resultado era como se ele andasse com um esfregão “Bravo” no topo da cabeça. E aquela cabeça, isso sim, andava à frente do seu tempo. Fala-se hoje de dar mais espaço à criatividade e empreendedorismo aos miúdos nas escolas, pois ora bem, já nesse tempo o Prof. Duarte fazia isso, reservando o tempo de aula das quartas-feiras para promover peças de teatro da nossa autoria.

Aquilo gerou um autêntico frenesi. E um dos maiores entusiastas com o teatro às quartas-feiras era o meu amigo Pedro Inocêncio. Eu, ele e mais dois ou três marmanjos formámos um grupo e começámos a levar aquilo cada vez mais a sério, com ensaios e tudo. Pedro era o ideólogo e, naturalmente, o líder. Era o líder porque confiávamos no seu talento, mas também porque sabíamos que não se podia contraria-lo muito, pois ele tinha certa propensão para fazer o número de amuar e virar costas quando as coisas não lhe corriam de feição. Número esse que, invariavelmente, terminava com alguém a insistir para ele voltar. E ele lá voltava, e lá continuávamos os ensaios com um empenho redobrado.

Foi assim que orgulhosamente criámos um vastíssimo leque de peças de comédia, muito embora a única de que hoje todos se lembram é o sketch do pionés, do Nuno Carmona. Neste sketch o Nuno revelava-nos como personagens de diferentes nacionalidades reagiam de forma diversa à mesma situação: sentar-se numa cadeira onde estava um pionés. Idiossincrasias que, claro, não favoreciam particularmente o caso do “português”. Mas principal furor fazia a cena em que o Nuno imitava um soldado alemão nazi marchando na direcção da cadeira onde o pionés o ia ferrar.

Ainda hoje, toda a gente se lembra disto. Já quanto a todas as peças que eu e o Pedro inventámos, discutimos, ensaiámos e trouxemos à luz toda a santa quarta-feira, caíram no esquecimento.

Tratou-nos mal, a História. Mas nessa altura tínhamos a ilusão de que um futuro verdejante na área artística nos esperava. E não contentes com o teatro, saltámos para uma carreira no cinema. Enfim, quando digo cinema, falo de uma coisa ainda rudimentar, já que a única câmara que tínhamos era uma antiga Super 8 que, viemos mais tarde a saber, não funcionava desde 1970.

Mas tudo o que fizemos ficou gravado onde é mais importante: na nossa memória. E é nas franjas da memória que suspendem obras imortais de acção e aventura que foram as nossas adaptações de “Rocky” e de “Rambo”. Rambo teve ainda direito a uma sequela, uma visionária mistela de Stallone com Senhor dos anéis, “Rambo II: As duas torres”, em que as duas torres eram, obviamente, os dois edifícios da “cidade jardim”. Para o bem e para o mal, eram os únicos prédios que tínhamos.

Mas aqui a grande questão prende-se com o protagonista. Quem era, afinal, o herói de todas estas sagas? Quem é que fazia de Rambo, de Rocky e de Chuck Norris se fosse preciso?

Evidentemente, era o Pedro Inocêncio. Digo evidentemente porque isto é história que vem de trás. Quando ambos chegámos a Elvas e nos juntámos à turma na 3ª classe, nessa altura eu também me chamava Pedro. Quem não gostou da ideia foi o professor Xarepe, para quem haver dois Pedros na turma era um disparate. Xarepe decretou então que um de nós teria que usar o segundo nome próprio. E se mais evidências não houvesse de que a escolha recaiu sobre mim, não há pelo menos nenhum registo de ter existido em Elvas um tal de “Manuel Inocêncio”.

A partir daí, eu soube. Soube que estava condenado a ser o “número 2”, o co-protagonista, o adjuvante, ou o mau da fita. Se fizéssemos o Sherlock Holmes, eu seria o Watson. Se fizéssemos o D. Quixote, eu seria o Sancho Pança.

Se fizéssemos uma cena em que Rambo estava na prisão e um guarda prisional sádico ia barbeá-lo em seco, eu seria esse guarda. E de facto fui. É das cenas que me lembro mais vividamente. Alguém agarrava o Rambo por trás enquanto eu, com uma pedra afiada, me aproximava para barbeá-lo. Isto parece algo Freudiano, mas foi mesmo assim.

Sinceramente, não sei onde é que fomos buscar aquela ideia. Haveria mesmo, no filme original, uma cena de tortura em que alguém tenta barbear Rambo em seco?

Em seco?

Parece, no mínimo, ridículo. Mas a verdade é que para nós, moços imberbes, aquilo de barbear em seco devia causar-nos uma certa espécie. E o Pedro representou a cena com tal realismo que pontapeou cheio de raiva a pedra que me foi parar aos queixos. Deve ser por isso que me lembro da cena tão vividamente.

Noutro episódio ainda, Rocky andava a dar cabo do canastro a nós todos no ringue de boxe, que era o quintal das traseiras da minha casa. Já tinha aviado o Fernando, já tinha aviado o Vivas, e quando foi a minha vez eis que, sem que fosse intencional ou motivado por qualquer tipo de vingança, atinjo-o a sério na cara. É preciso dizer que aquilo era um tempo em que não havia duplos. Quem apanhava, apanhava mesmo. E quantas vezes tal não terá acontecido a grandes ícones do cinema como Charlie Chaplin, que também não usava duplos. E até mesmo ao próprio Sylvester Stallone, a quem se atribui o problema de dicção a uma sapatada que lhe deixou o maxilar à banda. Mas nenhum destes argumentos convenceu o Pedro, que amuou e virou costas, rumo ao horizonte. Todos sabíamos, era o seu número. Mas eis que, desta vez, nós, os desancados, os adjuvantes, os maus da fita, entreolhámo-nos como quem se põe a pensar “E se houvesse um novo Rocky?”. Já o Pedro tinha atravessado o portão e ainda ninguém o tinha chamado. Os seus passos foram-se tornando lentos, cada vez mais lentos, sob o nosso olhar expectante. Até que, já lá ao fundo, a silhueta de Pedro parou uns instantes junto a um arbusto.

“Está a órinar!” - exclamou um de nós. De facto, pouco tempo depois, Rocky estava de volta.

Tudo a postos de novo, e regressámos aos combates de Super 8 em riste. Durante as filmagens havia algo que nos dizia “vai sair daqui uma coisa em grande”.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Gareth Keenan no seu melhor

“My Ideal Woman

If I could build my perfect woman (like in the film Weird Science) it would have:

Legs: Cameron Diaz
Arse: Kylie Minogue
Stomach: Britney Spears
Breasts: Jordan
Face: Jennifer Lopez
Brain: Winston Churchill”

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

CiberNautilus

Depois de Elvas, a terra mais pequena onde vivi foi na Internet.

Em Elvas reuniamo-nos, por exemplo, no Nautilus.

Na Internet econtramo-nos no Facebook.

Aliás, ao pé do Nautilus, o Facebook parece uma tasca de aldeia.

De uma terrola ainda mais pequena que Vila Boím.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Bolas de Buerlim

O primeiro animal de estimação de Zé Luís desde cedo definiu o carácter deste nosso amigo. Foi no pátio do ciclo preparatório que Zé Luís o encontrou, logo o acolhendo e baptizando. Deu-lhe o nome de Hugo. Convém dizer que Hugo não era bem um cão, também não era bem um gato.

Mais exactamente, Hugo era um louva-a-deus.

Muitos de nós espantámo-nos ao ver a ternura do Zé por um bicho pelo qual sentíamos aversão ou temíamos, e pensei “este fulano vai ser um dia um entomólogo!”.

O facto de hoje o Zé Luís ser informático de profissão não invalida a minha conjectura visionária. Isto porque, para quem não sabe, os louva-a-deus são geneticamente muito semelhantes às baratas (são uma espécie de baratas predadoras) e, como toda a gente sabe, os primeiros bugs informáticos eram precisamente baratas que circulavam dentro dos sistemas quando os computadores tinham ainda proporções gigantescas. Daí o nome, que ainda hoje ficou, de “bugs”.

Mas voltando ao Zé, o que ele tinha de admirável era este contraste de ser o mais forte de todos nós e interessar-se por uma criatura tão frágil como um louva-a-deus.

O Zé Luís não era brigão nem gostava de conflitos. Claro que, tal como os outros rapazes da turma, era aficionado por filmes de pancadaria e de cariz militar, não fossemos nós da altura em que o Pentágono patrocinava cerca de 80% dos filmes produzidos em Hollywood. E essa ficção que víamos na TV era canalizada pelo Zé para actividades criativas de inegável valor.

Lembro-me por exemplo que num concurso de posters na disciplina de Educação Visual, Zé Luís ganhou o primeiro prémio com uma magnífica composição de um cenário bélico, cheio de soldados e tanques, caças e explosões, e onde, com letras garrafais, aparecia por cima o título “A Gerra”.

Aparte a falta do “U” que foi perdoado pela professora – a mesma professora que não perdoou que eu, o João Carlos e o Fernando Gama tivéssemos chegado atrasados no dia em que o João foi severamente atacado pelo meu cão e chegou à aula com as costas besuntadas de nódoas negras (mas agora que penso bem, porque é que o Fernando também chegou atrasado? Ele não tinha desculpa, devia ter sido o único a levar com a falta) – o poster do Zé Luís esteve longe de ser a sua maior criação.

Eram outras bombas, que não as que explodiam no poster largadas pelos aviões aliados em plena Berlim. Mas eram também de Berlim, as que nos faziam derreter de deleite e nos levavam ao céu.

Eram as bolas de Berlim (ou de berlinde, como alguns diziam) da padaria do Zé.

Para ser inteiramente justo, esta criação deve ser imputada à mãe do Zé Luís, que era a dona da padaria. Mas todos nós conhecíamos a padaria como sendo “a Padaria do Zé”. Era, para nós, esse o nome da padaria. Excepto para os amigos do irmão do meio do Zé, para esses a padaria chamava-se “a Padaria do Tó”. E assim lá iam uns à padaria do Tó, outros à padaria do Zé, mas no fundo iam todos mamar do mesmo: aquelas divinas, incomparáveis, bolinhas de Berlim.

Longe deste ambiente paradisíaco patrocinado pela família Alface Gonçalves, havia na escola outro rapaz que, contrariamente ao Zé Luís, era minúsculo, mas mais vil que uma cobra. Andava sempre a provocar e a ameaçar toda a gente. Por vezes chegava-se a um de nós e pregava uma chapada, ou tentava atingir-nos com cuspo que acumulava deliberadamente na boca.

Ninguém retaliava, pois conhecíamos-lhe as origens duvidosas acopladas a um magote de irmãos mais velhos, prontos a desancar quem tocasse no menino. E este menino dava pelo seu nome de Américo.

O Américo era um problema que tolerávamos porquanto se mantivesse dentro das paredes da escola. Mas uma vez estávamos alguns de nós numa agradável partida de futebol quando o vimos a aproximar-se. Jogávamos com a bola que eu acabara de receber de presente de aniversário. Uma bola novinha em folha, vinda da loja Perdigão. Uma bola oficial topo de gama, reluzente, esplendorosa, gerando uivos de furor no meu grupo de amigos: “É de catechumbo!!!” exclamava o Fraldinhas, maravilhado.

E foi essa a primeira vez, e também a última, que jogámos com ela, porque assim como chegou o Américo foi-se outra vez embora, levando a bola com ele.

Apesar da frustração mais uma vez não retaliámos. E o Américo lá ia fazendo a sua vida, batendo em quem quisesse, cuspindo e roubando quem lhe apetecesse.

Isto até um dia. Um dia em que o Zé Luís disse “basta”. Aproximou-se de Américo, que estava a chatear um de nós e, muito simplesmente, pegou nele ao colo arrastando-o dali para fora. Américo esperneava enquanto era levado para longe, esmagado pelo peso da humilhação, pior do que ter levado uma valente tareia.

Nesse dia Américo sentiu-se, pela primeira vez, minúsculo. Mais minúsculo que um insecto.

Que um louva-a-deus.